Por: Jacqueline Maria da Silva
Notícia
Publicado em 28.03.2024 | 14:19 | Alterado em 30.03.2024 | 7:37
Nas prateleiras do mercado há uma variedade de produtos para todos os gostos e paladares. Ou nem todos: quem tem intolerâncias alimentares e não tem dinheiro para arcar com os altos custos das dietas específicas acaba tendo uma vida de restrições. E na maioria das vezes essas pessoas são moradoras das periferias.
Para elas resta uma dieta limitada, na qual acabam sendo obrigadas a excluir grupos de alimentos fundamentais à saúde, sem possibilidade de substituí-los com qualidade. A falta de opções aliada a dificuldade de manter acompanhamento com um especialista pode levar a problemas de saúde no longo prazo.
Esta é a preocupação da jornalista Caroline Lima dos Santos, 30, do Jardim Portela, em Itapevi, na Grande São Paulo. Ela descobriu a intolerância à lactose aos quatro meses de vida, com uma forte crise. Recentemente, foi diagnosticada também com intolerante ao glúten. Ela conta que viveu uma infância e adolescência de privações, porque a família – que na época vivia na Bahia – não tinha condições de comprar alimentos diferenciados e remédios.
A situação pouco mudou com o passar dos anos. “O leite de vaca convencional custa R$3,55. O sem lactose chega a R$7”, diz Caroline. Ela opta por passar tempos sem consumir alimentos que adora, como pizza, chocolate e massas, já que o remédio que previne os sintomas chega a custar R$80 e não é disponibilizado pelo serviço público.
Se a conta já era alta, ela ficou ainda mais salgada quando seu filho, Samoel Henrique, 3, também foi diagnosticado com alergia a uma série de alimentos, incluindo leite, glúten, ovo e soja.
A nova realidade transformou a ida ao mercado em uma verdadeira peregrinação em busca de produtos adaptados à condição do filho. A saída foi sair da periferia e passar a frequentar estabelecimentos especializados em bairros ricos e centrais. O preço dos alimentos, no entanto, chega a ser o dobro do que pagaria em Itapevi.
“Meu filho reage a produtos como castanha e aveia e só pode tomar leite de arroz e coco, que são ainda mais caros. Imagina [o gasto] para uma criança pequena que gosta de tomar leite toda hora?”
Caroline Lima dos Santos
O caso dela está longe de ser o único. Pessoas que vivem nas periferias têm acesso restrito a alimentos específicos para determinadas condições de saúde, seja pela disponibilidade ou pelo poder aquisitivo para comprá-los, como observa em consultório a nutricionista Daisy Aparecida da Silva, que atua em uma Unidade Básica de Saúde da zona sul da capital paulista.
“Hoje temos mais casos [de intolerância alimentar] devido à mudança de estilo de vida associada à chamada epigenética, que leva a população a se tornar mais sensibilizada”, pontua.
Ambas são de origem genética, associadas a fatores ambientais e caracterizadas como uma reação adversa à ingestão de determinados alimentos ou aditivos. No entanto, existem diferenças entre elas. Fique atento:
A intolerância aparece, normalmente, na fase adulta. Já a alergia alimentar é comum na primeira infância, entre 0 e 6 anos.
Na intolerância, o paciente tem reação a algum componentes dos alimentos, como a lactose, que é o açúcar natural do leite. No caso da alergia, a reação é a proteína do alimento, que é reconhecida pelo organismo como um agente agressor. Por isso o corpo gera uma reação de defesa, que são os sintomas da alergia.
Nos casos de intolerância alimentar é comum sentir náusea, dores abdominais, diarréia, gases e desconforto abdominal. Nas alergias pode ocorrer manifestações cutâneas, como urticária e dermatite; problemas respiratórios, como asma e rinite; e crises gastrointestinais, com náuseas, vômitos, dor abdominal, diarréia, sensação de queimação nos lábios e garganta e fezes amolecidas com muco e sangue.
A intolerância não tem cura porque é uma deficiência na enzima que digere determinada substância. Já a alergia pode ser amenizada dependendo do tipo de alimento e das características individuais.
O tratamento da intolerância alimentar é feito com restrição na dieta e consumo de alimentos sem a substância que agride o organismo. É possível ainda tomar remédios que fazem o papel da enzima. Na alergia, é preciso mais cautela: deve-se restringir totalmente a substância. O tratamento é feito com dessensibilização gradual, acompanhado por profissionais especializados.
Por ser uma condição que se manifesta precocemente, as mães de crianças alérgicas enfrentam desafios logo cedo. “Ele reagia conforme a minha alimentação [pela amamentação]. Um dia, ele começou a enrolar a língua e ficar ofegante, a gente levou para o hospital, e descobrimos a alergia. Precisei fazer uma dieta”, conta Caroline.
Por um período, ela arcou com os custos elevados do leite especial para bebês alérgicos, até que começou a receber o alimento pelo SUS. Ele, no entanto, só é fornecido até os dois anos de idade do bebê e a partir de um diagnóstico fechado.
“Cada lata custava R$280 e durava 15 dias. É muito difícil para quem mora na periferia conseguir pagar esse valor. Eu estava desempregada e precisei da ajuda de familiares. Eu comprava parcelado, mas fazia de tudo para ele não ficar sem os nutrientes [do leite]”.
Especialistas alertam que é fundamental ficar atento à descrição de ingredientes nos rótulos dos alimentos, que podem conter traços de produtos alergênicos em sua composição. O contato com a substância pode manifestar reações graves que podem chegar à anafilaxia.
Anafilaxia é uma reação alérgica mais grave que afeta vários órgãos e sistemas, causando por exemplo falta de ar e diarréia ao mesmo tempo. Ela pode levar a morte se não socorrida a tempo e é revertida com uso de caneta de adrenalina autoinjetável, que atualmente não é distribuída pelo SUS.
“Eu não sabia que era tão [sensível] assim. Molho de macarrão, por exemplo, atacava mais a alergia dele devido o corante ou até mesmo ao tempero”, comenta a auxiliar de limpeza Aline Santos Alves, 28, no Jardim Campinas, Grajaú, zona sul de São Paulo.
O filho, Heitor Samuel, 3, manifestou a primeira crise de alergia semanas depois de começar na creche, apresentando dermatite e sintomas respiratórios. Ele chegou a ficar internado para tratar o problema e possui marcas permanentes na pele.
Para evitar novas reações, a nutricionista do posto de saúde de referência da família enviou uma carta para escola com recomendações sobre a doença. Ela também forneceu orientações específicas para a mãe, sobretudo com relação à contaminação cruzada.
O cuidado se estende até ao uso de produtos de higiene antialérgicos, já que alguns podem conter soja ou leite na composição.
“Ele passou mal, ficou com a pele avermelhada, quando fui olhar, tinha leite na composição do sabão em pó, foi horrível”, lembra Caroline. “Hoje, eu só lavo as roupas dele [filho] com sabão de coco ou neutro”.
Aline Santos Alves
Conhecer o diagnóstico trouxe alívio para as duas mães, mas não amenizou a rotina: é preciso separar itens de uso doméstico dos demais moradores da casa e higienizá-los constantemente, além de limitar a alimentação das crianças em festas e inventar receitas com poucos ingredientes.
Na lista de desafios está também vencer a resistência e o preconceito de quem acha que é frescura, preparar e levar opções de alimentos ao sair de casa e até se afastar do mercado de trabalho. “Eu perdi meu emprego, porque precisava levar ele ao médico e não aceitavam os atestados. Tentei trocar meu horário, mas não quiseram”, desabafa Aline.
Leia rótulos
Por lei, os rótulos de alimentos industrializados devem informar se existem produtos que comumente causam alergia, como soja, ovo, trigo, centeio, cevada, aveia, crustáceos, peixe e amendoim. Saiba mais.
Pergunte sempre
Converse com quem preparou o alimento, seja em uma festa, em um almoço de família ou até em um restaurante. É importante saber se aquele alimento contém produtos alergênicos. Na dúvida, não coma. Confira lista de alimentos que acendem sinal amarelo nos alérgicos.
Atenção às vacinas
Algumas vacinas podem conter resquícios de proteína do leite ou ovo. É sempre importante sinalizar o médico e o enfermeiro para verificar se pode haver reação.
Fonte: Informativos do projeto Alergia Alimentar, criado por mulheres que convivem com alergias
A jornalista Carolina divide angústias, é acolhida e recebe e faz doação de produtos antialérgicos em um grupo de mães periféricas, no qual várias têm filhos com alergias.
Segundo a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia, pelo menos 2% dos adultos e 8% das crianças no mundo possuem algum tipo de alergia alimentar. No Brasil, são 6% das crianças e 3,5% dos adultos, segundo o site Alergia Alimentar Brasil.
Os percentuais preocupantes, no entanto, não vêm acompanhados de políticas públicas para garantir tratamento, sobretudo para quem mora nas periferias. Uma das principais dificuldades é ser atendido por profissionais especializados, como alergista e nutricionista, e diagnosticar a doença por meio dos testes específicos.
Depois de diversas internações e de percorrer hospitais a procura de ajuda para o filho, Aline acabou pagando uma consulta com uma dermatologista para Heitor, para descobrir que a inflamação grave que ele apresentava na pele era uma alergia alimentar.
“O médico do posto disse que era sarna, mas não melhorou com os remédios. Ele já estava afastado da escola e eu sem poder trabalhar. O corpinho dele ficou muito machucado e ele ficou todo marcado”, lembra.
A médica sugeriu acompanhamento nutricional, mas Aline só conseguiu agendar uma consulta para o filho com a especialista após formalizar uma reclamação junto a ouvidoria na Unidade Básica de Saúde. Só então a família conseguiu fazer testes específicos. “A dermatologista pediu um retorno de três meses, mas já tem mais de seis meses e não foi marcada a consulta. É desanimador, tudo muito burocrático”.
Dependendo do tipo de alimentos envolvido na alergia e da resposta do sistema imune, é possível que o paciente passe a tolerar um determinado tipo de alimento ao qual tinha alergia, em especial se o tratamento começar após o primeiro ano do diagnóstico. Em outros casos, a pessoa pode começar a tolerar pequenas frações do alimento sem apresentar sintomas. O processo deve ser acompanhado por um profissional especializado.
A nutricionista Daisy reforça que é papel do poder público fornecer acompanhamentos e diagnósticos específicos para detecção de intolerância e alergias alimentares. O SUS deve também fornecer leite especializado nos casos de alergia e garantir adaptação da merenda escolar para quem tem restrições alimentares.
Atualmente, tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei (4204/21) que propõe ampliar o fornecimento gratuito de leite especial até os quatro anos para crianças com alergia e intolerância.
As duas famílias ouvidas na reportagem são assistidas por programas de alimentação específicos nas escolas de seus municípios, que inclui os cuidados com crianças alérgicas, conforme previsto no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.
Em nota, o Ministério da Educação afirmou que cabe às redes de ensino, assim como às escolas, incorporar propostas pedagógicas sobre educação nutricional, conforme estabelecido na Base Nacional Comum Curricular.
Já o Ministério da Saúde especificou, em nota, as leis que obrigam as instituições de ensino a oferecerem alimentação escolar adaptada para intolerância, alergias, doença celíaca, diabetes e outras restrições. Além disso, frisou que regulamenta resoluções para rotulagem de alimentos e para capacitação obrigatória de profissionais da educação em primeiros socorros.
Sobre a caneta de adrenalina autoinjetável, que não é fornecida pelo SUS às famílias de crianças alérgicas, o Ministério da Saúde afirmou que o não fornecimento deve-se ao fato de o medicamento não ser comercializado no Brasil, por falta de registro do produto. Porém, o Projeto de Lei 85 de 2024, que tramita na Câmara dos Deputados, prevê liberar o uso do produto.
Em novembro de 2023 foi instituída a Semana Nacional de Conscientização sobre Alergia Alimentar, por meio da Lei nº 14.731.
Esta reportagem foi produzida com apoio daReport For The World
Jornalista formada pela Uninove. Capricorniana raiz. Poetisa. Ama natureza e as pessoas. Adora passear. Quer mudar o mundo e tornar o planeta um lugar melhor por meio da comunicação. Correspondente de Cidade Ademar desde 2021. Em agosto de 2023, passou a fazer parte da Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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