Pedro Oliveira/Rede Ubuntu
Por: Henrique Sales Barros
Notícia
Publicado em 26.09.2019 | 12:19 | Alterado em 26.09.2019 | 12:37
Criada há três anos, Rede Ubuntu também promove formação política e se baseia em filosofia africana
Tempo de leitura: 5 min(s)Morador do distrito do Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, Vinicius Pascoal, 20, estuda Engenharia Civil no IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo).
Para passar no vestibular, ele fez um tipo de cursinho que se popularizou na zona sul da capital e tem apoiado estudantes das periferias que buscam o ensino superior: a Rede Ubuntu.
Em 2016, ele foi aluno do embrião do que seria o projeto formado por seis cursinhos da região. “A gente chamava de cursinho do [Jardim] Ângela e do Jacira [Jardim Jacira, bairro de Itapecerica da Serra]”, diz. Ele estudou no segundo citado, que hoje se chama Polo Alan Soares.
“Desde a aula inaugural minha vida foi transformada. Foram diversas palestras, depoimentos de pessoas que já passaram pelo mesmo processo [de vestibular]”, relata o futuro engenheiro. Ele mesmo se tornou um dos educadores do cursinho e dá aula de física aos sábados na unidade Santo Dias, no Jardim Ângela.
A Ubuntu nasceu em 2016 depois que coordenadores de cinco cursinhos pré-vestibulares do Jardim São Luís e Jardim Ângela, na zona sul da capital, e de Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, resolveram unir forças para a inclusão de jovens da região no ensino superior.
A rede contou com a adesão dos cursinhos Alan Soares, Guarani, Rosa de Luxemburgo, Santo Dias e XIV de Novembro. Dois anos depois, o curso pré-vestibular do CEU (Centro Educacional Unificado) Capão Redondo também aderiu ao projeto.
A inspiração vem de uma filosofia africana. A palavra ubuntu, que dá nome a rede, possui um significado especial para os povos etnolinguísticos bantu existentes na África Meridional. Para eles, ela denomina uma espécie de filosofia que prega a noção de comunidade acima dos interesses individuais.
A filosofia ubuntu esteve muito ligada a luta não violenta contra o apartheid, regime de segregação racial que imperou durante a segunda metade do século passado na África do Sul. Tal período durou até 1994, quando Nelson Mandela (1918-2013) assumiu a presidência do país.
“Ela pressupõe que não deve existir competição, que não existe alguém que seja melhor que o outro. Ela fala, de fato, que a ideia não é competir: é somar”, diz o professor de geografia Rafael Cícero, 34, um dos fundadores e coordenadores gerais da Rede Ubuntu.
Morador do Jardim Jacira, Rafael é formado em Geografia na UEL (Universidade Estadual de Londrina) e ministra aulas para turmas do ensino fundamental no CEU Vila do Sol, no Jardim Ângela, e também é professor no Polo Alan Soares.
Segundo ele, a ideia central da rede é a troca de experiência entre os cursinhos. “Você vê que um [cursinho] está dando certo por isso, outro está dando certo por aquilo. A gente quer ser uma rede que além de ser unificada, seja uniformizada”.
O foco da Ubuntu é a aprovação de alunos no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e na Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), que é o principal meio de ingresso à USP (Universidade de São Paulo).
“No ano passado tivemos dez alunos que foram para a segunda fase da Fuvest. Desses, três conseguiram [ingressar na USP]”, diz Rafael. “Dos que não passaram, três voltaram para o cursinho e quatro entraram via Sisu (Sistema de Seleção Unificada) em alguma universidade pública”, completa.
Enzo Gustavo, 18, ingressou neste ano como voluntário na Ubuntu e atua como coordenador e professor eventual no Polo Santo Dias. Morador do Jardim Ângela, ele é estudante de História na USP.
Questionado sobre se conseguia se enxergar como uma inspiração para os vestibulandos da rede por ser um estudante da USP, ele tenta se desviar desse tipo de rótulo. “Acho que a questão é mais de mostrar oportunidade. O que a gente segue aqui, que é o ubuntu, que é ‘eu sou porque nós somos’, é uma filosofia de aproximação”.
“Estar aqui e mostrar que ‘olha, passei minha vida toda no Nakamura [Jardim Nakamura, bairro do distrito do Jardim Ângela], e hoje estou na USP’, é algo muito forte”, completa.
Já Vinicius relata que às vezes ouve algumas brincadeiras em tom de admiração dos alunos. “Muitos deles falam que, quando crescerem, querem ser igual a mim”, diz ele dando risada. “Eu sempre digo para eles: ‘eu sou igual a vocês. Daqui a dois ou três anos, vocês podem estar iguais ou até melhores que eu’. É desse jeito que eu tento incentivá-los”, conclui.
Praticamente todos os professores da Rede Ubuntu são da região ou vem de zonas periféricas da capital e arredores.
“A maioria deles [professores] também é de escola pública, e isso é importantíssimo porque significa maior habilidade para ter controle de sala e significa ter experiência do que passar e não passar [em aula]”, afirma Rafael.
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Janaina Gomes, 33, é uma dessas professoras. Moradora do distrito do Campo Limpo, também na zona sul, ela é formada em Ciências Biológicas pela USP e dá aulas de química e biologia em duas escolas estaduais da zona sul.
Na Ubuntu, ela é professora de biologia no Polo Guarani e de química na unidade localizada no CEU Capão Redondo e no Polo Alan Soares. Em breve, também dará aulas de biologia no Polo Santo Dias.
Comparando as aulas no ensino público e no cursinho, ela relata a vantagem do segundo na questão do interesse dos alunos porque os estudantes entram no curso com um objetivo. “Os alunos querem ouvir você”.
A Rede Ubuntu possui parcerias para conseguir material para os alunos, como apostilas e simulados da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e do Curso Objetivo. Ainda assim, desde o ano passado eles começaram a produzir as próprias apostilas para os vestibulandos.
“A gente busca construir [nosso próprio material] para termos autonomia e não precisarmos ficar pedindo, comprando ou dependendo dos outros”, diz Rafael.
Para financiar esse material e outras despesas do cursinho, a Ubuntu conta com uma arrecadação voluntária que é feita com os vestibulandos ingressantes na rede no início do ano. O valor recomendado para tal é de R$ 100.
A rede também trabalha com o que chamam de formação cidadã. Todos os meses é realizado um debate sobre questões políticas e sociais em um dos polos. Eles são feitos em parceria com a Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, ligada ao PSOL (Partido Socialismo e Liberdade).
“Se debate sobre direitos humanos, negritude, feminismo, enfim, sobre assuntos que permitem que eles [vestibulandos] construam argumentos que podem ser úteis para os vestibulares mas que também faz com que eles pensem sobre a vida”, diz Rafael.
No dia 31 de agosto, por exemplo, foi feito um debate em torno do tema ‘Segurança pública: quem mata e quem morre?’, no Polo Rosa de Luxemburgo. Agora em setembro, no dia 28, o tema será ‘A solução é alugar o Brasil?’, e será feito no Polo XIV de Novembro.
Jornalista em formação e correspondente do Jardim Ângela desde 2019. Também é colaborador do coletivo O Contra-Ataque.
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