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Agência de Jornalismo das periferias

Renan Omura/Agência Mural

Por: Renan Omura

Notícia

Publicado em 03.06.2022 | 12:07 | Alterado em 08.06.2022 | 14:23

Tempo de leitura: 6 min(s)

Alexandra Braga, 44, mora no bairro Porteira Preta, periferia de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Ela está familiarizada com as salas de aula, pois durante o dia leciona para as crianças das escolas municipais e à noite cursa graduação em assistência social.

Mulher trans e militante das causas LGBTQIA +, a professora quer mudar de profissão. “Sou apaixonada pela área do ensino, porém sei que posso contribuir também nos serviços socioassistenciais”, afirma.

O objetivo dela é atuar em instituições ou ONGs que forneçam auxílio para vítimas de LGBTfobia. Alexandra explica que crimes desse tipo ocorrem com frequência no município, mas faltam ações da prefeitura de denúncias e acolhimento das vítimas.

“Posso citar várias ocorrência que culminaram em mortes aqui em Mogi. Lola Santos, Sarah Maia, Danielly Barbie, Nataly Lily, entre muitas outras foram assassinadas. Sem falar nos casos que ocorrem nas escolas quase todos os dias”, afirma.

Alexandra quer se tornar agente social para atuar em ONGs ou na Secretaria de Assistência Social de Mogi das Cruzes @Renan Omura/Agência Mural

Um dos episódios recentes que teve bastante repercussão foi em 9 de fevereiro na escola estadual Galdino Pinheiro Franco, em Mogi das Cruzes. Na ocasião, uma aluna trans de 16 anos sofreu agressões verbais e físicas. O crime foi gravado e gerou protestos.

“Meu corpo é um corpo de luta. Sofri na pele esse preconceito, mas resisti e estou aqui. Passei por diversas situações horríveis e quero ajudar quem passa por isso”

Entre a cruz e a espada

Filha de um padeiro e uma faxineira, Alexandra cresceu no bairro Vila Caputera, periferia de Mogi das Cruzes. Aos 5 anos, começou a demonstrar afeição pelo universo feminino. “Geralmente vestia o sapato da minha mãe, vestia o saiote e a minha família achava graça”, conta.

Com o passar do tempo, os familiares trocaram o riso por julgamento. E por influência religiosa dos pais, ela buscou a “libertação” dentro da igreja, pois temia ser condenada ao inferno. “Os pastores tentavam me ‘curar’ por meio do exorcismo”, relata.

Alexandra explica que na década de 1990, pouco se falava sobre questões de gênero, muito menos sobre hormonioterapia – processo com hormônios para a transição de gênero. Sem compreender a própria condição existencial, ela vivia um conflito interno e não sabia onde encontrar orientação.

Foi quando, aos 15 anos, teve o primeiro contato com a comunidade LGBTQIA+ da cidade. Convidada por um amigo, visitou escondido a boate Ildes Bar onde conheceu um grupo de mulheres trans que se apresentavam como drag queens no local.

Embora tenha ficado interessada, Alexandra acreditava que todos naquele local, inclusive ela, estavam sob condenação divina. Voltou para casa confusa e assustada, mas dias depois retornou à boate.

“Fiquei em pânico. Achava que todos estavam endemoniados lá, mas, ao mesmo tempo, aquilo me atraiu muito. Quando eu vi as drags montadas, fiquei apaixonada por aquele universo. Me senti entre a cruz e a espada”, afirma.

Professora Alexandra Braga relata casos que ocorreram nos últimos anos em Mogi @Renan Omura/Agência Mural

Aos poucos, Alexandra aproximou-se do grupo e foi acolhida. Buscando entender mais sobre o processo de transição de gênero, perguntou para elas qual era o procedimento necessário para conseguir as mudanças corporais.

Ao ser orientada começou a comprar injeções de Perlutan – anticoncepcional com estrogênio – e iniciou a hormonioterapia sem nenhuma orientação médica. Para adquirir as primeiras doses pegou dinheiro escondido dos pais.

“Não sabia o que eu estava fazendo, mas eu tinha que fazer. Fui à farmácia e comprei. Entrei no banheiro de casa e apliquei em mim sem saber nada. Mas tinha certeza que estava fazendo a coisa certa”, conta.

Prostituição

Para dar continuidade com a terapia hormonal, Alexandra precisava de dinheiro. Foi quando ela soube que as mulheres que se apresentaram na boate faziam programas nas ruas de Mogi das Cruzes. Certa noite, decidiu ir junto com o grupo.

“Tinha 16 anos quando elas me deram uma calcinha, um shortinho branco e um topzinho. Elas falaram ‘se você quiser ficar com a gente, veste essa roupa e vem pra cá’”

A jovem enfrentou o medo, vestiu as roupas que havia ganhado e foi para a rua. Já na primeira noite, recebeu uma proposta e fez um programa.

“Tremia de medo e fiz o que ele me pediu. Eu era inexperiente, mas naquela noite a Alexandra nasceu. E daquele dinheiro eu vi a possibilidade de me hormonizar mais, de cuidar mais de mim, porque eu queria ser bonita”, afirma.

Após um ano, Alexandra já via o efeito da hormonização. Para esconder da família, usava roupas largas e compridas. Mas uma noite depois de voltar das ruas, ela dormiu e esqueceu de cobrir as pernas. Quando a mãe da jovem entrou no quarto e percebeu que parte do corpo dela estava depilado, levantou a blusa da filha e viu os seios em formação.

“A partir desse momento o caos se instaurou dentro de casa. Minha mãe começou a me espancar e cuspir na minha cara. Ela disse que não tinha colocado um ‘viado’ no mundo e quis me expulsar.”

“Eu sofri na pele esse preconceito, mas resisti e estou aqui, lutando pela causa @Renan Omura/Agência Mural

O pai de Alexandra culpou a mãe pela situação e se divorciou dela. Diante desse conflito, a jovem saiu da escola e passou a não esconder mais quem era. Dormia de manhã e durante a noite se prostituia para se manter.

“Na vitrine das ruas, eu comecei a ser bastante desejada. Fazia em torno de 30 programas por noite e passei a ganhar muito dinheiro”, relata.

Nesse período, Alexandra viveu a fase mais conturbada da vida. Usava drogas e ficava dias sem voltar para casa. Quando sofria algum tipo de discriminação ou violência, reagia da mesma forma.

“Se a pessoa me olhasse torto eu as rasgava com uma faca que eu carregava na bolsa. Uma vez até bebi o sangue de uma delas. Eu não tinha nada a perder, então, de oprimida, passei a ser a opressora”, afirma.

Foi em uma dessas brigas na Rua Princesa Isabel de Bragança, no centro de Mogi, que Alexandra conheceu Alex, com quem se casou. Na ocasião, ela foi espancada por três homens que não queriam pagar o programa.

Alex a viu ensanguentada caída no chão e parou para prestar socorro. O plano era apenas deixá-la no hospital, porém com a correria, Alexandra esqueceu a bolsa no carro dele. Após alguns meses, os dois se encontraram novamente e passaram a se conhecer melhor.

Da noite para o dia

Logo começaram a namorar e Alex a incentivou a deixar a prostituição e as drogas. “Esse relacionamento com o Alex foi crescendo e fui saindo das ruas aos poucos. Ele foi me tirando indiretamente, não foi nada forçado. Alex foi me trazendo para o dia e mostrando que eu poderia ser inserida na sociedade”, conta.

Apesar das mudanças na vida, Alexandra não se sentia bem com o órgão genital masculino. Ela conta que por vezes o amarrou e puxou para tentar arrancar, e por três vezes tentou o suicídio.

“No final da década de 1990, não se ouvia falar em transição de gênero ou coisa do tipo. Não é como hoje que as pessoas têm acesso às informações”, explica.

Alex foi quem a ajudou e encontrou em Perdizes, bairro de São Paulo, um psicólogo que tratava pacientes na mesma situação.

Após realizar uma triagem, Alexandra foi encaminhada para psicoterapia em grupo. Lá foi explicado sobre uma possível cirurgia de redesignação genital e ficou na fila para realizar o procedimento pelo SUS (Sistema Unificado de Saúde).

Durante a espera de uma vaga, a moça retornou aos estudos e concluiu a primeira graduação em pedagogia e logo realizou uma pós-graduação em psicopedagogia. Passou no concurso público e começou a dar aulas em escolas municipais.

Dez anos depois do início da terapia em grupo, Alexandra recebeu uma ligação. Era o médico que faria a tão sonhada cirurgia. Ela estava agendada para alguns dias depois.

Alexandra é professora, pós graduada em psicopedagogia e estudante de serviço social @Renan Omura/Agência Mural

“Estava disposta a tudo porque não conseguia existir mais naquele corpo. Foram sete horas de cirurgia, quando acordei a primeira coisa que fiz foi enfiar a mão embaixo do cobertor e na hora que vi o tampão eu ‘falei agora acabou meu sofrimento’”, conta.

Além da cirurgia, Alexandra lutou por um ano para conquistar o nome que tem Alexandra Adriana Braga de Vasconcelos. Hoje ela é militante, ativista e vice-presidente do Fórum Mogiano LGBT, onde luta contra o preconceito.

“Hoje entendo meu papel na sociedade, porque vivi pra chegar até aqui e é por isso que hoje estou no serviço social. É aqui que vou ter uma abertura maior para defender a minha vida e a vida de outras pessoas transexuais e travestis”, diz.

“Sobrevivi nesse mundo por algo maior a passar, eu estou aqui porque tenho vidas a defender.”

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Renan Omura

Jornalista. É fotógrafo por hobby (as vezes por trabalho), é amante dos dias frios e nunca dispensa um café. Correspondente de Suzano desde 2019.

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