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Agência de Jornalismo das periferias

Por: Julio Ferreira

Notícia

Publicado em 16.10.2023 | 17:31 | Alterado em 17.10.2023 | 11:40

Tempo de leitura: 5 min(s)

“Minhas alunas são diversas, e não menosprezo ninguém”, conta a professora de dança Angela Sabino, 59. “Se você sabe dançar ou não, se você é gorda ou magra [não importa]. Na hora das aulas, o objetivo é garantir saúde, diversão e autoestima”, ressalta a educadora de Pedreira, região da zona sul de São Paulo.

Apaixonada pela dança e pelo esporte, ela decidiu ensinar para ajudar outras mulheres a se aceitarem e nutrirem uma boa autoestima.

Com essa ideia, ela criou um projeto que reúne mais de 30 alunas por semana e as aulas são feitas de maneira voluntária pelas quadras da região do Pedreira ou no CEU (Centro de Educação Unificado) Alvarenga. Além disso, as alunas sempre fazem vaquinha para ajudar a professora.

O ambiente é sempre bem-humorado. No dia a dia, Angela aparece com o cabelo ruivo cacheado amarrado ou armado, além de usar roupas customizadas. Ela enfatiza que não gosta de tocar só música antiga.

Angela é professora de dança e ajuda moradoras da zona sul @Julio Ferreira/Agência Mural

“As pessoas acham que as mulheres de meia-idade não podem ouvir música novas. Sempre vejo o que está em alta. Tem funk, passinhos, músicas do TikTok, hip-hop, eletrônica”

Angela Sabino, professora de dança em Pedreira

“Sempre fui extrovertida e tudo que eu vivo é com intensidade. Gosto de passar essa energia para as meninas.”

Esse jeito extrovertido, porém, veio após passar dificuldades na infância. “Era para eu ter morrido ou ter entrado no mundo do crime, mas não me rendi às adversidades da vida. E eu sei que não foram poucas”.

Responsabilidade desde cedo

Angela foi deixada em um orfanato em São Paulo quando tinha seis anos,, porque a mãe, Tereza, precisava trabalhar e não podia levá-la.

“Foi horrível, porque eles maltratavam todas as crianças”, recorda. A instituição sofria denúncias e, por conta disso, se mudou para o Rio de Janeiro no final dos anos 1960. A garota foi junto.

No orfanato, os funcionários ameaçavam as crianças para evitar que contassem aos pais o que sofriam. Quando a instituição fechou, Angela voltou para São Paulo com a mãe por volta dos 8 anos. “Sempre que podia ir me visitar, ela ia uma vez por mês”, diz.

A volta não foi fácil. A mãe estava sem emprego, e elas moravam no porão de uma igreja, no Parque Primavera, na zona sul. Elas ficavam no fundo da instituição e, em troca, a mãe fazia a limpeza do espaço. “Ela não recebia nada, só tinha direito a um cômodo sem luz e um colchão”, lamenta.

Não bastando a dura realidade que já vivia, ela precisou criar outras responsabilidades após a mãe engravidar novamente. “Com uns 12 anos eu já tinha que cuidar das minhas irmãs”, conta a professora, que teve 4 irmãs.

“A presença de mulheres sempre foi muito forte na minha vida e ser responsável por elas também”, adiciona.

Angela estudou educação física e já treinou times de futebol @Julio Ferreira/Agência Mural

No processo, a educação também foi deixada de lado devido às preocupações que tinha em ajudar em casa. “Na escola sempre sofri por ser a mais pobre, e não conseguia estudar direito pensando nas minhas irmãs e minha mãe. O trabalho era mais importante para mim.”

Como ela morava no fundo da igreja, virou uma criança evangélica, mas foi expulsa após cortar o cabelo. Após ser expulsa, passou a “viver no mundão”. Foi quando a paixão pelo esporte nasceu: jogando bola. Porém, ficou grávida aos 16 anos e se casou por pressão da mãe, bastante religiosa.

Apesar disso, ela deixou os cuidados da filha com a mãe e as irmãs: “Me arrependo hoje, mas na época, não abandonaria meu futebol por nada”. Ela reconhece que com o futebol pôde ser quem queria, e agora com as irmãs já crescidas, ela decidiu viver o sonho dela: “O esporte trouxe outros ares para mim.”

Dança

Não só o futebol, mas a dança também virou uma paixão, após frequentar bailes por São Paulo. “Fui em todos os lugares que podia, e cheguei a ser ‘entendida’”.

Samba-rock, hip-hop, rock e outros ritmos de dança entraram no repertório dela, que até então não sabia, mas usaria no futuro para ajudar outras mulheres.

Após a morte da mãe, de quem era muito apegada, foi chamada para dar aula de futebol em uma ONG da região. “Eu treinava os meninos, e eles sempre iam para a final e, logo depois, algumas outras ONGs também começaram a me chamar.”

Foi um período ótimo para ela, mas a realidade de não ter concluído o ensino bateria. Ela concluiu o ensino fundamental e o médio via supletivo. “Eu me sentia inferior por não ter um currículo na área que eu gostava, e tudo que aprendi foi na prática.”

Com a filha Késia já crescida e trabalhando, ela conta que se não fosse pela ajuda financeira da filha, não conseguiria focar nos estudos. Após concluir o ensino médio, ela também entrou na faculdade de Educação Física. “Consegui me formar, mas precisei trancar e demorou alguns anos devido aos problemas pessoais que apareciam.”

O estopim para ela ter buscado se especializar foi ter sido dispensada de uma ONG que dava aula, sendo trocada por uma pessoa que tinha formação.

Angela diz que além da dança, aulas tem virado ponto de encontro e amizade @Julio Ferreira/Agência Mural

Anos mais tarde, ela teria contato com a febre da zumba . E foi ali que viu uma oportunidade. Ela fez o curso, mas viu que não cabia na realidade dela.

“Pra gente usar a marca da zumba, tem que pagar em dólar, não era isso que eu queria”. Assim, ela criou um modelo próprio: usou uma variedade de estilos e ritmos musicais em conjunto com exercícios corporais.

Ela também fez cursos complementares como primeiros socorros, musicalidade e aeróbica. “Busquei saber tudo sobre o universo da dança.” Assim passou a ensinar e ajudar as mulheres do bairro.

“As alunas viraram minhas amigas”

As alunas de Angela são mulheres com mais de 35 anos. As mulheres que vão para a aula se tornaram parte da vida dela, como as alunas Odete Oliveira, 47, Julia Silva, 48, Emília Barbosa, 71 e Miriam Ono, 54. “Sempre escuto elas e dou conselhos.”

“Não gosto desse papo de feminismo, mas meu projeto ajuda muito algumas delas, que me contam que já saíram da depressão, conseguiram lidar com o abandono dos filhos ou maridos depois de começar a frequentar minhas aulas.”

O projeto já ganhou destaque na região e a professora celebra por saber que ela foca na saúde e não apenas na beleza. “Para mim, isso é irrelevante. O importante é elas estarem se sentindo bem. Quando a gente faz aula em academias, os professores sempre dão atenção para as mulheres mais bonitas.”

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Julio Ferreira

Apaixonado pela escrita, música e audiovisual, é estudante de jornalismo pela PUC-SP e venceu o 13º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão com a pauta “Brasil sob a fumaça da desinformação”. Correspondente de Pedreira desde 2023.

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