Léu Britto/ Agência Mural
Por: Jacqueline Maria da Silva | Luis Antonio
Notícia
Publicado em 31.01.2024 | 15:45 | Alterado em 23.04.2024 | 21:20
No interior da sala, paredes cobertas de tapume estampam queixas, letras de música, e frases motivacionais escritas em tinta sprays neon: “traída”, “estresse”, “trago sua paz na força do ódio”. No local, estão alguns objetos variados sem uso: televisores, garrafas e impressoras.
O som de rock pesado ecoa e as marretas estacionadas num canto da parede completam o cenário convidativo para as pessoas da recepção, que aguardam o momento de extravasar seus sentimentos. Inspirados pelas “salas de raiva” gringas, os irmãos Vanderlei Alves, 45, e Vitor Alves, 21, crias da Cidade Tiradentes, inauguraram durante a pandemia a Rage Room CT.
O negócio atravessou a ponte e atraiu famosos, como Igor 3k, do Flow Podcast, Carolina Ferraz, do Domingo Espetacular (Record TV) e a atriz e cantora Cleo. Depois do boom, o negócio mudou para próximo ao metrô Tatuapé, para facilitar a acessibilidade.
“Uma senhora escreveu a palavra câncer na televisão. Depois contou pra gente que conseguiu vencer a doença. Ficamos muito felizes de saber. Acho que eu nunca vi alguém quebrando um negócio com tanto gosto”, relembra Vitor, que futuramente vislumbra a abertura de três lojas em outros estados.
Fora do Rage Room, outra batida embala a economia de Cidade Tiradentes: os hits “O Gigante Acordou”, de Mc Daleste (1992-2013), “Olha o Kit 3”, “As Minas do Camarote” e“Rolê de Hayabusa”, de MC Dede. São músicas produzidas por Bruno Freitas Ribeiro, 34, ou DJ Bruninho FZR, que retratam o orgulho de ser da ZL, como é chamada a zona leste da capital paulista.
Atualmente, as páginas do artista no Youtube (Funk TV, Ritmão Produtora e Studio FZR) somam mais de 500 mil inscritos e revelam o alcance do trabalho. A grande procura de artistas iniciantes e veteranos pelo estúdio leva o jovem a produzir pelo menos 30 músicas por mês e a empregar dez pessoas.
“A gente sempre foca em talentos da [Cidade] Tiradentes. Graças a Deus, todo mês, a gente consegue criar”, diz o artista.
Se empreender é o sonho de muitos jovens como uma alternativa para ter mais autonomia e sentido no trabalho, é preciso ter um olhar crítico sobre essa prática, sobretudo nas periferias.
“O discurso do empreendedorismo vai no caminho de algumas pessoas se fortalecerem por trabalhos de viração, que já acontecem nas periferias. Trata-se de um ‘empreender por necessidade’”, aponta a psicóloga social Beatriz Assis Ferreira de Souza, 27.
Em Cidade Tiradentes, a maioria das empresas é de pequeno porte (87%), sendo 84% delas registradas no formato MEI (Microempreendedor Individual), segundo a plataforma “Empresa Aqui”. O distrito encontra-se entre os 20 com maior presença de MEIs da capital paulista . No entanto, paradoxalmente, é classificado com a menor oferta de emprego formal (0,3%), conforme indicado pelo Mapa da Desigualdade 2023.
No Mapeamento Participativo de Cidade Tiradentes feito pelo Unicef, os jovens entrevistados apontaram os bailes funks como importante instrumento de geração de renda do distrito.
Para além dos desafios do mercado de trabalho, empreender – por sonho ou necessidade – requer muito trabalho. E nem sempre ele é suficiente. No início da carreira, aos 19, o músico Bruninho conciliava o trabalho no mercado de bairro com shows de funk feitos com equipamentos de gravação e computador emprestados de amigos, sem receber nada.
Os cachês vieram mais tarde e deram a ele a possibilidade de investir nos próprios materiais para montar um estúdio no andar de cima da casa em que mora. A partir desse momento, Bruninho passou a se dedicar exclusivamente à carreira de produtor, recebendo incentivo de outros artistas. “Eu comecei a criar essa visão de como cobrar pelas músicas e bailes e a valorizar meu trabalho”.
A costureira Nayara dos Santos, 23, de Cidade Tiradentes, ainda equilibra o sonho e a necessidade. Durante o dia trabalha em uma linha de produção, sem carteira assinada, para tirar sustento e ganhar experiência. À, noite estende a jornada no pequeno atelier no próprio quarto, para alavancar sua marca de roupas, a Replantio Ressignifique. A marca veste artistas periféricos independentes do rap, hip-hop e underground.
As peças são personalizadas e feitas sob encomenda para cada cliente, a partir de retalhos de tecidos descartados por grandes marcas. Autodidata, aprendeu a costurar pelo YouTube e comprou sua máquina com o dinheiro das primeiras vendas, contando também com a ajuda de familiares.
Hoje, Nayara está economizando para concluir o curso de designer de costura, o qual precisou interromper algumas vezes por falta de recursos financeiros.
“Minha ideia surgiu da inquietação em ver pessoas buscando referências fora das quebradas e ao mesmo tempo identificar que a moda de fora é inspirada na periferia. Eu acho que é proposital [a mídia] fazer a gente acreditar que só as grandes marcas são boas e não enxergar valor no que tá próximo. Eu trago a periferia no meu corpo, a gente não precisa se modular ou se retirar do nosso ambiente e sim agarrar com força na nossa arte.”
Nayara dos Santos trabalha em seu quarto para alavancar sua marca de roupas, a Replantio Ressignifique @Léu Britto/ Agência Mural
Marca veste artistas periféricos independentes do rap, hip- hop e underground @Léu Britto/ Agência Mural
Peças são personalizadas e feitas de retalhos descartados por grandes marcas @Léu Britto/ Agência Mural
Pela sua trajetória, Nayara sonha em desenvolver um projeto de profissionalização para jovens costureiras empreenderem na quebrada. Já Bruninho contribui com o projeto “Constância”, uma espécie de incubadora de MCs, onde os artistas pagam um valor simbólico para que sua produtora gerencie suas carreiras.
É o retrato de um “espírito de solidariedade” que tem muito a ver com as periferias segundo a psicóloga Beatriz, que estuda a relação social do trabalho de Cidade Tiradentes em seu mestrado.
“Os trabalhadores do bairro lutaram por direito e reivindicaram um modo de vida que aparece nestas novas formas de organização [do trabalho]”
Beatriz Assis Ferreira de Souza, psicóloga social
O Colmeia Tiradentes é um exemplo desse movimento. Como o próprio nome sugere, o projeto faz referência a uma sociedade unida de seres que se abrigam, produzem, estocam e utilizam seus produtos em seu próprio espaço.
Para sair do papel, fundaram o Colmeia e agenciaram dois artistas de funk por dois anos. Depois, ofereceram consultoria para outros pequenos empreendedores, como os irmãos criadores da Rage Room.
Carlos Ronchi, 31, e sua esposa são as abelhas que ajudam a potencializar negócios. Sonho que surgiu quando eles participaram de um curso de capacitação para empreendedorismo pelo PBAE (Programa Brasil Afroempreendedor), ação financiada pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e administrada pelo Sebrae.
Eles também foram responsáveis por incubar outros projetos em Cidade Tiradentes, como o Primavera Empreendedora e o Verão Interativo; o Sebrae nos Prédios; Urgências Corona; a Feirinha CT. Ano passado inauguraram o Pub Quebrada.
“Com a Feirinha CT contratamos 50 pessoas da quebrada e faturamos R$1.200 por semana. Houve um momento em que recebemos R$ 7 mil de faturamento, e assim pudemos mudar para um novo espaço e comprar a plataforma de disparo do WhatsApp”, relembra Carlos.
Outro projeto que faz brilhar os olhos dele é o Casas Colmeia, que oferece reformas, modernização e manutenção de prédios. A ação, ainda piloto, durou cerca de sete meses e trouxe aos participantes um retorno financeiro de R$ 25 mil.
“A gente está em um momento de assinatura de contrato com outros parceiros, para pôr em prática obras em prédios”, explica. “É um movimento de valorizar o modelo de comprar do pequeno produtor, no local que ele produz”.
BAOBÁ- FUNDO PARA EQUIDADE RACIAL: Instituição promove editais para captação de recursos para projetos de empreendedorismo negro
BE.LABS: Aceleradora de negócios formada por mulheres e voltada para empoderamento financeiro deste público
EXPO FAVELA: Feira anual que ajuda a impulsionar iniciativas de empreendedorismo de pessoas das favelas e periferias
FA.VELA: Hub de educação empreendedora que empodera grupos e territórios vulnerabilizados, em especial pessoa negras, periféricas e LGBTQIAP+
PRETA HUB: Oferece programas de capacitação e estratégias de aceleração de negócios criados por empreendedores negros
REDE DA MULHER EMPREENDEDORA: Instituição que trabalha o empoderamento feminino por meio de capacitação para projetos econômicos
TAMO JUNTO: Portal da Organização Aliança Empreendedora que disponibiliza conteúdos e cursos gratuitos para capacitar pequenos negócios e microempreendedores(as) em situação de vulnerabilidade social
Repórter da Agência Mural desde 2023 e da rede Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project. Vencedora de prêmios de jornalismo como MOL, SEBRAE, SIP. Gosta de falar sobre temas diversos e acredita do jornalismo como ferramenta para tornar o planeta melhor.
Jornalista, tenho um pezinho na música e sou curioso por tecnologia. Além de fazer carinho nos cães e gatos de rua, curto boas histórias, filmes, séries e memes, sou bom de garfo e gosto de andar por aí. Correspondente de Cidade Tiradentes
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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