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Entre covas e sonhos: o sepultador que semeou meus estudos

Correspondente relata a história do próprio pai, Elias Jacinto, coveiro em Guarulhos, que enfrentou a dureza da rotina para garantir o futuro dela

Elias Jacinto, pai da jornalista Amanda Oliveira, de Guarulhos

Arte Magno Borges/Agência Mural

Por: Amanda Oliveira

Crônica

Publicado em 09.10.2025 | 7:21 | Alterado em 09.10.2025 | 7:21

Tempo de leitura: 4 min(s)

Entre a dor das despedidas e o silêncio das covas, meu pai semeava o meu futuro. Elias Jacinto, coveiro em Guarulhos, na Grande São Paulo, carregava nas mãos calejadas o peso da terra e a leveza do meu amanhã.

Cada túmulo fechado era também uma porta que se abria para que eu pudesse estudar. Enquanto via a vida se encerrar todos os dias, garantia que a minha pudesse florescer nos corredores de uma escola particular. 

A escala 12×36 exigia muito esforço físico, tanto que chegou a romper o tendão do braço por conta do serviço. Era assim que ele garantia a mensalidade.

Enquanto isso, minha mãe, Cléo Oliveira, se esforçava cuidando de outras crianças para custear minhas passagens de ônibus. Eram quase 8 km até a escola. Em Guarulhos, diferente de São Paulo, não há passe-livre estudantil.

Elias Jacinto, o coveiro que se tornou biólogo, com a filha jornalista @Acervo pessoal

Quando eu tinha 11 anos, ele me ensinou a pegar ônibus sozinha, refazendo comigo todo o trajeto da escola, já que não havia dinheiro para pagar uma perua escolar. A adaptação teve seu próprio custo. Me chamavam de “pobrinha”, “moça da roça”, riam do meu tênis sem marca e do meu cabelo cacheado. 

Os materiais escolares eram caros, as apostilas quase objetos sagrados e, geralmente, era uma das últimas da turma a ter todos os livros. Era comum escolher entre uma conta ou outra para pagar.

Naquela época, inventei várias histórias: dizia que ele era advogado, professor, motorista de deputado. Fazia isso para evitar zoeira dos colegas. Contraditório, pois no fundo me orgulhava do sepultador que, com as mesmas mãos que seguravam a pá e levantavam a terra pesada, erguia também os meus sonhos.

Morávamos em uma casa de um único cômodo, com teto sem reboco e aparecendo as lajotas. Sem piso, nós cobríamos o chão com muitos tapetes. Os armários caídos e sustentados por blocos, uma geladeira enferrujada que ganhamos de doação porque a nossa queimou e éramos obrigados a abrir com pano de prato para não levar choque.

Nessa “casa feita com muito esmero” aprendi a escutar Djavan, Cássia Eller, Ana Carolina, Belchior, Caetano Veloso e tantos outros artistas brasileiros que Elias, com seu bom gosto, me apresentou. Fazia comida escutando em seu rádio, depois sonzinho e anos depois o DVD com as mesmas belas músicas de sempre. 

Sob os tapetes do quarto, ligava o DVD e começávamos a cantar juntos e admirar as músicas. O nosso amor pela música nos uniu mais ainda quando ele me presenteou com um microfone e as noites na casinha eram mais felizes na cantoria.

Amanda entre os pais no dia do lançamento do livro dela “Liberdade Roubada- drama de pessoas presas injustamente” @Arquivo pessoal

No ensino médio, nossas condições melhoraram. Meu tênis velhinho não importava tanto e ir de ônibus era uma realidade mais comum para a maioria dos alunos. Cresci ouvindo dos meus pais que a porta da mudança de vida seria o estudo.

Não importava se faltasse roupas melhores ou as mensalidades atrasassem, ele estava proporcionando o que nunca teve: estudo. Com essa certeza, meu pai concluiu a faculdade de biologia. Minha mãe, depois de já ter tido eu e meu irmão, terminou a pedagogia. Naquele momento, todos em casa eram estudantes.

Elias e Cléo, pais de Amanda, em ceia de Natal @Arquivo pessoal

A frase “O inimigo do ruim é o bom. Seja excelente em tudo o que fizer” na voz do meu pai ecoa entre importantes gravações da minha memória.

Com o tempo, ele subiu de cargo, embora tenha passado no concurso como coveiro, chegou a chefiar setores. Às vezes me levava com ele. Eu o observava datilografar rápido na máquina de escrever, depois no computador de tubo, e o imitava em casa.

Amanda e Cléo Oliveira, a mãe que cuidava de crianças numa escola pública e realizou o sonho de tornar professora @Acervo pessoal

Caminhei com ele entre covas e conheci a administração de quase todos os cemitérios de Guarulhos. Lembro quando um colega sugeriu, em tom de deboche, que ele deixasse de pagar escola para os filhos e comprasse um carro melhor. Seguimos no velho Gol azul, que vivia nos deixando na mão.

Anos depois, quando meu pai já estava com os cabelos ralos, a barba branca e a força já não era a mesma, entrei na faculdade de jornalismo. Ele chegou a me incentivar a fazer medicina, direito ou até engenharia, mas respeitou minha escolha. Desde então, me chama, com orgulho, de ‘minha jornalista’.

Durante a pandemia, em 2020, quando meu contrato de trabalho foi cancelado e pensei em trancar a faculdade, foi meu pai quem segurou as pontas. Diante do aumento de enterros, fez horas extras no cemitério..

As covas que meu pai abriu se transformaram em caminhos para mim. As crianças que minha mãe cuidou na educação infantil ajudaram a garantir minhas idas e vindas de ônibus.

Enquanto meu pai via a vida se encerrar todos os dias, fazia esforço para que a minha começasse. E minha mãe, ao educar os filhos de outros pais, garantia que eu tivesse acesso à minha própria educação. Este texto é, antes de tudo, um sinal da minha imensa gratidão.

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Amanda Oliveira

Jornalista, pós-graduada em comunicação e marketing e autora do livro reportagem: Liberdade Roubada- O drama de pessoas que foram presas injustamente. Causas sociais, direito de igualdade/equidade a motivaram a fazer jornalismo.

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