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Excluídos do auxílio emergencial, catadores se arriscam para manter renda na pandemia

Nas periferias de São Paulo, trabalhadores viveram impacto com suspensão temporária do trabalho e queda na renda. Muitos não têm documentos, o que impede solicitação de apoio

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Ira Romão/Agência Mural

Por: Lucas Veloso | Ira Romão | Léu Britto

Notícia

Publicado em 15.10.2020 | 14:19 | Alterado em 22.11.2021 | 16:32

Tempo de leitura: 5 min(s)

No Jardim do Russo, em Perus, zona noroeste de São Paulo, o catador de materiais recicláveis Jeremias Martins Castro, 63, não deixou de trabalhar nos últimos meses, apesar da pandemia de Covid-19 e de ser parte do grupo de risco.

Terças, quintas e sábados, começa a rotina às 4h da manhã. Com chapéu na cabeça, correntes e chaveiros pendurados no pescoço, percorre as casas do bairro com a carroça, feita com uma geladeira velha adaptada com rodas. 

Desiludido com os governantes, critica a falta de ajuda à categoria durante a fase mais crítica da quarentena. 

Em maio deste ano, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) negou o auxílio emergencial para uma lista de categorias específicas, como pescadores artesanais, agricultores familiares, assentados de reforma agrária, além dos catadores de materiais recicláveis no país.

“O certo era o governo ter liberado, mas eu nem fui atrás. Isso aí [benefícios do governo] eu nem penso”. 

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O catador Jeremias, na zona noroeste, nem chegou a pedir o auxílio emergencial, pois não acredita em políticas públicas @Ira Romão/Agência Mural

Como Jeremias, na cidade de São Paulo, a prefeitura contabiliza 2.100 pessoas que trabalham como catadores de materiais recicláveis, mas o número tende a ser maior. A estimativa leva em conta quem está cadastrado nos abrigos municipais. Fora do cadastro, estão catadores autônomos, os que dormem nas ruas, ou fazem parte de cooperativas. 

Segundo números divulgados pela Promotoria de Direitos Humanos, a maior parte dos catadores está na zona leste da capital. Cidade Tiradentes somou quase um quarto do total, com cerca de 870 registrados.

Na pandemia, Jeremias garantiu renda com os materiais recicláveis como papelão, garrafa pet, latinha e ferro. Está no ramo há cerca de cinco anos, quando deixou de lado a rotina de pedreiro. 

Apesar de não ter se isolado e ficado exposto ao vírus, diz que conseguiu manter os ganhos. O volume de material para venda que costumava demorar 20 dias para ser juntado tem levado menos tempo na pandemia: entre 12 e 15 dias. “Como tem mais gente em casa, a quantidade de material descartado aumentou”. 

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Em maio deste ano, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) negou o benefício para uma lista de categorias específicas, entre eles, os catadores @Ira Romão/Agência Mural

Dados da prefeitura reforçam esse aumento na demanda desses trabalhadores. Segundo a Amlurb (Autoridade Municipal de Limpeza Urbana), até dia 18 de setembro, os resíduos provenientes da coleta seletiva aumentaram em 26%, quando comparados ao mesmo período de 2019 – cerca de 8,1 mil toneladas a mais. 

O serviço domiciliar de coleta seletiva recolheu 46,4 mil toneladas, enquanto em 2019 foram coletadas 36,9 mil toneladas de recicláveis.

Houve o fechamento temporário de 24 cooperativas de reciclagem em São Paulo. Com o trabalho presencial suspenso, a maior parte dos catadores ficou sem renda. 

“A vida deles está muito sofrida porque a maioria das famílias que estão catando são as pessoas que não têm documentos nem para pedir auxílio”, afirma Doroti Pereira Montes Fidelis, 52, dona da cooperativa STR Reciclagem. 

Ela diz que o dia a dia dos catadores está sendo ‘sacrificante’, por conta do vírus e do aumento de trabalho no período. “Não tem uma política de reciclagem para facilitar”. 

Doroti também diz que no país faltam condições dignas para quem atua com reciclagem. Há alguns meses viajou a Portugal e compara o tratamento dado aos trabalhadores. “Lá tem dignidade para que as pessoas trabalhem. Aqui não”. 

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Doroti diz que muitos catadores não conseguem pedir apoio, pois não tem documentação @Léu Britto/Agência Mural

Para a dona de cooperativa, lugares para tomar banho e guardar as carroças deveriam fazer parte do plano municipal de reciclagem, sobretudo em momentos de crise social, como a pandemia de Covid-19. 

A STR, comandada por Doroti, fica na Estrada da Baronesa, avenida no Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo. Com mais de 18 anos no setor, hoje ela administra a empresa que emprega 28 pessoas. Com a pandemia, os cuidados aumentaram. Por lá, ninguém foi vítima da Covid-19. 

“Tivemos todo trabalho de gestão, com conversas, avisos, reuniões onde explicamos como deveríamos fazer a elaboração de prevenção contra o vírus. Na entrada teve medição de temperatura, além do uso de viseira, máscara e outras medidas de proteção”, lembra. “Também aumentamos o número de uniformes. De 3 para 5”. 

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Maria Aparecida Araújo, mais conhecida com Cida, é proprietária do Comércio de Sucatas Riviera, localizado no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo @Léu Britto

Por outro lado, diz que faltou apoio para esses profissionais que ajudam o meio ambiente da cidade. “Se você me perguntar de ajuda, digo que foi zero. Não tive ajuda nenhuma aqui”, diz. Na sequência, revê. “Para não dizer que foi nada, recebi do posto de saúde cinco máscaras, álcool gel de cem gramas e umas pastas de dente”, conta.

Maria Aparecida Araújo, 43, mora no Parque Figueira Grande, também na zona sul, e é dona de uma cooperativa na região. “São muitas exigências para gente funcionar, mas não temos apoio. Há várias complicações com laudos e alvarás e muitas vezes nos vemos desprotegidos”.

Comprar novas máquinas é outra reclamação de Maria. Com preços de equipamentos na faixa de R$ 200 mil e R$ 300 mil, diz que a falta de crédito para manter funcionários e se adequar às novas regras de segurança foi um desafio na pandemia. “Vejo falando muito na televisão sobre o que a gente faz, mas o governo não apoia”. 

Doroti comenta que é ‘absurdo’ faltar material reciclável na cidade enquanto resíduos não foram coletados pela prefeitura na pandemia. “Todos os dias recebo pedidos de empresa querendo matéria-prima. As coisas estão indo para o lixão, infelizmente está sendo enterrado ou incinerado por falta da coletiva seletiva”, observa.

Para exemplificar, ela explica que se conseguir 100 toneladas de material em um dia, vende fácil, mas o processo não ocorre por falta da coleta seletiva. 

“Você enterra o material que vai demorar mais 450 anos para se decompor. Ou queima e polui a camada de ozônio. Isso acaba com o nosso planeta, pois destrói um material que você poderia estar gerando emprego e evitando outros problemas”. 

Questionada sobre as críticas feitas pelas catadoras, a Prefeitura de São Paulo disse que, durante a pandemia do novo coronavírus, garantiu o funcionamento dos serviços públicos para o descarte dos recicláveis.

De acordo com a resposta, o município possui uma rede de cooperativas habilitadas no Programa Socioambiental da Prefeitura, que atende 930 cooperados. Para preservar a saúde dos trabalhadores,  suspenderam temporariamente suas atividades.

Por outro lado, diz que a medida também ofereceu assistência remunerada de R$ 1.200, por seis meses, para as cerca de 930 famílias associadas às cooperativas habilitadas. 

Além dos cooperados habilitados nas cooperativas, a pasta disse que outros 1.400 catadores autônomos, que participaram dos cursos do Programa Reciclar para Capacitar, estão recebendo o recurso de R$ 1.200 mensais desde abril deste ano.

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Jeremias junta os materiais em sua casa antes de vender @Ira Romão/Agência Mural

Catadores relatam descaso do poder público na pandemia @Léu Britto/Agência Mural

STR Reciclagem é uma empresa de 18 anos de existência gerenciada pela proprietária Doroti Pereira, localizada no jardim Ângela, zona sul de São Paulo @Léu Britto/Agência Mural

De acordo com informações oficiais, o serviço domiciliar de coleta seletiva recolheu 46,4 mil toneladas, enquanto em 2019 foram coletadas 36,9 mil toneladas de recicláveis. @Léu Britto/Agência Mural

Na cidade de São Paulo, a prefeitura estima em 2,1 mil o número total de catadores de materiais recicláveis @Léu Britto/Agência Mural

‘TEM GENTE QUE ACHA RUIM EU MEXER NO LIXO’

Apesar do orgulho de sua função, Jeremias se diz triste, já que nem todo mundo valoriza o trabalho. “Tem gente que acha ruim por eu mexer no lixo e por eu deixar minhas carroças na rua. Mas também têm muitos que já acostumaram e até guardam material pra mim”.

Para o catador de Perus, a forma com que as pessoas descartam os materiais poderia ser diferente. “Seria bom se a turma já colocasse os materiais separados para eu não ter que abrir os sacos de lixos. E assim eu não precisaria por mão lá”, finaliza. 

Na zona sul, Maria Aparecida também relata preconceito das pessoas com seu trabalho. “Queria que todos vissem nosso trabalho como algo que ajuda a sociedade”, inclui. “Levo na esportiva. Do jeito que eu estou aqui, eu vou no banco, na padaria, mas quando não estou com a roupa de catadora, eu sou mais visível”. 

Ela sugere que as pessoas não chamem a reciclagem de lixo. “Não é lixo, mas material reciclável. Muita gente vive disso. Eu vivo disso. Para nós é a sobrevivência”. 

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Lucas Veloso

Jornalista, cofundador e correspondente de Guaianases desde 2014.

Ira Romão

Jornalista, fotojornalista e apresentadora de podcast. Atuou em comunicação corporativa. Já participou de diferentes projetos como repórter, fotógrafa, verificadora de notícias falsas e enganosas. Foi uma das apresentadoras do ‘Em Quarentena” e da série sobre mobilidade nas periferias. Ama ouvir histórias, dançar, karaokê e poledance. Correspondente de Perus desde 2018.

Léu Britto

Fotojornalista e videomaker. Transitar pelos becos e vielas do mundo amando cada um do seu jeito e maneira de viver. Cofundador do DiCampana Foto Coletivo. Correspondente do Jardim Monte Azul desde 2010.

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