Uma folha de capim e uma lanchonete fazem parte de duas áreas que nasceram nos anos 1970 na zona oeste
Por: Vitória Guilhermina
Notícia
Publicado em 09.08.2022 | 15:27 | Alterado em 11.08.2022 | 16:32
Rodeadas de favelas com nomes intrigantes, a região do Rio Pequeno, distrito da zona oeste de São Paulo, abriga as favelas onde Rita Tereza e Alcina Matilde vivem há mais de 60 anos
Tempo de leitura: 5 min(s)No final da avenida do Rio Pequeno, na zona oeste de São Paulo, começa a Favela do Sapé. Entre casas construídas ao redor de um córrego, que vai até a rodovia Raposo Tavares, há vielas que são denominadas por números, mas também recebem nomes de flores. É o caso da Viela das Orquídeas, onde mora Rita Tereza Conceição, 63.
Rita viveu por dez anos no distrito de São Domingos, também na zona oeste, antes de chegar ao Sapé, região que começou a ser ocupada nos anos 1960. “Aqui não tinha barraco nenhum [em 1969]. Quando eu vinha com meu pai para cá, a gente vinha para pescar. Meu pai pescava muito aqui, era só taboa e folha, e o rio era água limpa”, relembra.
A Agência Mural ouviu ela e outras moradoras sobre a história das favelas da região. Para além dos nomes, a luta por moradia e serviços públicos marcam as vidas dessas famílias que até hoje têm receio de perderem o lugar onde moram. Além disso, são bairros que passaram por muitas mudanças com o avanço da urbanização.
Rita coloca a mão no queixo e narra que fisicamente a região era muito mais laranja nas décadas de 1960 e 1970. “O rio era largo demais, era limpo, o chão aqui era terra, aquela terra laranja mesmo, sabe? Até a avenida do Rio Pequeno, era tudo de terra, era bem mais larga a rua”, ressalta.
A favela do Sapé tem esse nome principalmente pelas taboas e folhas de sapés, um tipo de capim, usado para construir os primeiros barracos da comunidade. “Lá onde tem os barracos de sapé”, era como as pessoas se referiam ao lugar.
Depois de deixar a casa dos pais em São Domingos, Rita veio para a região principalmente pelos preços de aluguéis mais acessíveis.
Ela diz que o sonho dela é “viver em paz” e ter uma casa sossegada. “Na verdade a terra não é nossa, mas o material é nosso, as casas foram feitas com nosso esforço”, diz a moradora.
Também imagina um dia em que possa voltar a ver água limpa pelo bairro, com peixes, mas sabe que essa volta ao passado é difícil. “Mudou tudo, os canos de esgoto caíam tudo aqui, os lixos vinha tudo para cá”, ressalta.
Favela do Sapé foi formada ao redor de um córrego @Rafaela Araújo
Vera Lúcia é uma das principais lideranças comunitárias do bairro @Rafaela Araújo
Folhas de sapé levaram ao nome do bairro @Rafaela Araújo
Rita conheceu a região quando o pai vinha pescar @Rafaela Araújo
Moradores aguardam entrega de projeto de reurbanização @Rafaela Araújo
Vera Lucia dos Santos, 51, é uma das principais lideranças comunitárias da região. Chega a atender mais de 1.300 famílias, e tem outras 400 na lista de espera. Aponta que o maior problema da comunidade é a situação das moradias.
“Não para de vir gente morar aqui, ainda mais na pandemia. Abre um espacinho e o povo já constrói”, aponta a líder comunitária, citando o agravamento da crise sanitária que levou ao aumento da população em favelas.
Além disso, a sensação de insegurança por conta das moradias é outro problema.
“Todo mês tem a lenda que a prefeitura vai vir tirar o povo daqui, porque as moradias são insalubres e as pessoas continuam aqui, esperando os prédios que prometem ficar prontos”
Vera Lúcia, 51, líder comunitária no Rio Pequeno
Os prédios fazem parte do projeto de reurbanização do Sapé, que promete atender 2.500 famílias da região, mas ainda sem data para conclusão.
Vera se emociona contando o que significa a favela para a caminhada dela. Lembra que criou sete filhos sozinha e também ajudou na criação de outras crianças. “Tudo da vida eu aprendi aqui, tem muita gente boa e estou em contato com todo mundo”, diz.
A 2 km dali, a favela da 1010 começou um pouco depois da favela do Sapé. As primeiras ocupações do espaço foram a partir de 1970. Antes, a região toda era uma chácara chamada de Nossa Senhora da Assumpção e a sua extensão também acompanha um córrego.
Uma das primeiras moradoras foi Alcina Matilde Dos Santos, 89. Nascida em Livramento (BA), chegou em São Paulo por volta de 1973. “Eram só três barracos que tinham aqui, era tudo terra, pisava e chegava a afundar o pé”, relembra.
“Era tudo a chácara Nossa Senhora da Assumpção, virou esse nome de agora por causa da lanchonete 1010, aí acabou ficando o nome da comunidade.”
A lanchonete 1010 que Alcina se refere funcionou até o começo dos anos 2000. Hoje, no local, está o mercado 1010. Entre as possíveis origens do nome estão a qualidade nota “10” e outra por está localizada na altura do número 1.010 da avenida Otacílio Tomanik.
Apesar de ter fechado, o nome da lanchonete serviu de inspiração para nomear a comunidade e outros comércios, como bares, adegas e mercadinhos. A favela também ganhou fama no ano passado, quando o time da região ficou com o vice-campeonato da Taça das Favelas.
Alcina conta com choro nos olhos como ela saiu da Bahia e veio se achegar em São Paulo. “Saí da Bahia de pau de arara, sabe o que é Pau de Arara?”, questiona, antes de começar a narrar a difícil travessia que foi a de muitos nordestinos que vieram para o estado no século passado.
“Um caminhão. A mulher pegava a gente, jogava num caminhão. A mulher era ruim, eu viajei oito dias, indo para o Paraná, para uma cidade que chama Uraí.”
A ida inicialmente a Uraí era porque a mãe de Alcina vivia nesse município, onde trabalhava em uma farmácia. No entanto, a passagem por lá foi curta, após ela viver na casa de familiares do dono de uma fazenda, onde conta ter sofrido maus tratos. “Lá era muito difícil de serviço”, conta. Até que se mudou para São Paulo. “Vim porque a minha irmã casou e eu vim para a casa dela.”
Alcina também relembra que, assim que chegou ao Rio Pequeno, já conseguiu emprego de doméstica e relembra os momentos de brincadeira com a única filha, Adelisa. “Só tive a Adelisa de filha mesmo, depois eu arrumei aqui e fiz um barraco de tábua. O rio era ali embaixo, atrás da casa. Adelisa brincava na beirada do rio no sábado e no domingo, ficava na beirada brincando com a terrinha”.
Hoje com 48 anos, Adelisa Matilde dos Santos pontua dentro do território o lugar que mais mexe com ela. “O lugar mais importante aqui dentro é a escola, a José Américo, era onde eu me sentia segura, porque minha mãe trabalhava o dia todo e eu ia para escola mais cedo porque eu me sentia segura”, diz.
Adelisa frisa que a mãe, ao lado de mulheres como Rosa e Mercedes, é uma das precursoras pela luta por moradia e serviços como água e luz.
“Ela, a dona Rosa e a dona Mercedes foram precursoras pela luta por moradia aqui, trazendo água e luz para cá. Antes, a gente pegava emprestado dos vizinhos lá de cima, da Otacílio”
Adelisa dos Santos, 48, moradora do Rio Pequeno
Essa solidariedade, segundo ela, é uma das marcas que permanece até hoje. “Todo mundo se ajuda”, conta. Como exemplo, ela cita que a mãe teve Covid-19 e recebeu apoio de vários moradores. “As pessoas ajudavam a levar no hospital, nos médicos, é uma comunidade bem unida”, finaliza.
Jornalista e cineasta de quebrada. Criadora do podcast Segredos Das Margens. Por meio da escrita e imagem evidencia as narrativas omitidas dentro dos territórios. Está aprendendo a ser cientista social fazendo jornalismo e cinema de quebrada. Correspondente do Rio Pequeno desde 2022.
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