Por: Isabela Alves
Notícia
Publicado em 31.01.2024 | 10:48 | Alterado em 30.07.2024 | 21:49
A aldeia Tekoa Kalipety completou 10 anos de existência em outubro de 2023, com uma característica diferente de outros territórios indígenas. Localizada a três quilômetro ao sul da Barragem, bairro rural do distrito de Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, foi por meio de uma liderança feminina que a região se tornou um importante ponto de recuperação de áreas degradadas.
Trata-se de Jera Guarani, 41, principal liderança por trás das mudanças do território, onde o ativismo dela gerou sementes: 12 aldeias novas foram criadas, das quais cinco são lideradas por mulheres.
“Viemos para cá com muita ansiedade para começar esse trabalho. A recuperação da terra aflorou os sentimentos da comunidade e os espíritos guaranis acordaram. A vida hoje está bem melhor”, diz.
Habitada por cerca de 70 pessoas, o povoado se tornou referência em práticas agroecológicas pela combinação dos saberes tradicionais guaranis e técnicas alternativas do mundo não-indígena.
Para a série “Periferias e Justiça Climática: alternativas ambientais para os nossos”, Jera fala sobre os desafios ao se tornar uma liderança feminina, a luta pela demarcação de terras e os avanços da aldeia nesta última década.
Nascida na Terra Indígena Tenondé Porã, que fica entre São Paulo, São Bernardo e outros municípios, Jera sempre desejou um futuro com o direito da demarcação de terras garantido e aldeias construídas por mulheres. Mas, em 2008, momento em que se juntou ao conselho da aldeia, isso era um sonho a ser trabalhado.
“Quando começo a participar das reuniões existia o cacique e vice cacique. O vice é como uma parede que pode ser usada toda vez que necessário, uma posição de escape para o cacique. Quando o bicho pega, é tudo colocado nas costas dele”, conta.
Por ser a única mulher nesse espaço, sofreu com críticas duras vindas das próprias mulheres que não entendiam os motivos dela compor o grupo com o cacique e outros quatro homens. “Demorou para que elas entendessem que uma liderança feminina iria facilitar as coisas.”
Essa experiência durou quatro anos. Apesar de pensar em desistir por diversas vezes, ela continuou o trabalho de base ao oferecer apoio para as mães solo, denunciar os casos de violência sexual e lidar com os problemas das bebidas alcóolicas que entravam no território.
‘Eu estava me tornando liderança, porque era a única forma de intervir nas decisões internas’
Jera Guarani, liderança indígena da zona sul de São Paulo
Para se manter no grupo majoritariamente masculino também não foi fácil. Por diversas vezes, Jera se deparou com situações das quais não concordava. “Eu ainda tenho muito sapo na garganta, porque não desceu tudo. Tive que me manter paciente e falar de forma cautelosa, porque eles poderiam me tirar a hora que bem quisessem”, relembra.
Com o passar dos anos e com o crescimento da confiança dos demais, ela começou a se posicionar nas reuniões gerais e desconstruir a ideia da liderança interna que conheceu desde que nasceu e, que na sua avaliação, nunca foi boa para o coletivo.
Tradicionalmente, se o cacique ficasse doente ou morresse, a liderança seria automaticamente do filho, ainda que esse homem não fosse bom para aquela posição. Ao falar dessa estrutura, Jera abriu espaço de reflexão sobre hierarquias e o modelo patriarcal nas aldeias.
Além disso, também organizou diversos atos na cidade de São Paulo. Um momento marcante para a ativista foram os protestos contra o enaltecimento dos bandeirantes em São Paulo.
Em setembro de 2013, cerca de 300 indígenas fecharam o tráfego da Rodovia dos Bandeirantes e, no mês seguinte, organizaram uma marcha onde o Monumento às Bandeiras, no Parque Ibirapuera, foi coberto de tinta vermelha para simbolizar o massacre que a obra oculta.
“Foi quando o espírito guarani acorda. Das mulheres, dos homens e das crianças. Ali fica muito esclarecido o quanto é importante fazer a luta juntos e não deixar só na mão de uma pessoa. Quando uma comunidade inteira se levanta, isso nos fortalece e as pessoas se sentem protagonistas do movimento”, afirma.
Nesse mesmo ano, ocorreu a retomada da Aldeia Kalipety. A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) já havia reconhecido a terra indígena em 2012, com 46 mil hectares.
Naquele momento, só faltava a portaria declaratória do Ministério da Justiça iniciar o trabalho da demarcação física, que é quando a Funai paga os bens de direitos a famílias ou proprietários que estavam habitando aquele espaço.
No entanto, com a mudança, houve alguns incidentes. A área estava sendo utilizada para desmanche de carros roubados, depósito para garrafas de cachaça, latas de cerveja e cigarro, e também para atividades de tiro ao alvo com armas de fogo.
“Tentaram nos amedrontar com um carro que veio aqui e atirou para cima. Outra situação foi quando estávamos fora da aldeia, e cortaram nossas barracas e jogaram as enxadas e facões no açude. Tivemos que coletar tudo de novo”
Em outra ocasião, um advogado vindo da Bahia afirmou que um suposto dono do terreno sabia da “ocupação” e trouxe um documento para ser assinado. “Respondemos que a gente não iria ficar aqui pra cuidar para ele. Vamos ficar para constituir uma aldeia e não vamos assinar nada, porque essa terra já é nossa”.
Os moradores da aldeia decidiram juntos ficar e resistir a todos esses episódios. E no passado, aquela terra já era habitada por outros guaranis, inclusive pela mãe, avô e tio de Jera.
A aldeia decidiu que ali não haveria casas de alvenaria, banheiro comum e que não se compraria comidas de fora ou receberiam doações. Eles se organizariam para proteger as áreas degradadas e trabalhariam pela sustentabilidade interna.
Para recuperar os alimentos guaranis, as lideranças viajaram para diversos lugares, como os países da Argentina e Paraguai, e os estados brasileiros do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Paraná.
Lá encontraram todas as comidas que haviam perdido: milho, amendoim e mandioca. Atualmente, a aldeia se encontra abastecida e compartilha o alimento com outras etnias, chegando até ao Acre e Mato Grosso, por exemplo.
Nas roças da comunidade, destaca-se o fortalecimento do plantio das muitas variedades de jety (batata-doce guarani), com cerca de 50 tipos resgatadas. “Sempre lembramos que esse alimento é para comer. Fortalecer o corpo e o espírito”.
Em relação ao futuro do planeta e a luta pela preservação do meio ambiente, Jera aponta que todo mundo que estiver fazendo o mínimo pela natureza, está fazendo um trabalho que é bem-vindo.
A liderança também afirma que cada vez mais mulheres indígenas estão tendo visibilidade para apontar novas vivências em que o ser humano e o meio ambiente convivam em harmonia.
“A gente vive nesse país muito preconceituoso e tudo que vem de fora desses lugares [Europa], que teoricamente tem o poder do dinheiro, tem a vida facilitada para estudo e pesquisa. Mas não significa que não existam indígenas nesse papel.”
*A série “Periferias e Justiça Climática: alternativas ambientais para os nossos” foi produzida com apoio do ICFJ (International Center for Journalists).
Graduada em jornalismo pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM) e pós graduanda em Mídia, Informação e Cultura pelo Celacc/USP. Homenageada no 1° Prêmio Neusa Maria de Jornalismo. Correspondente do Grajaú desde 2021.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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