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Agência de Jornalismo das periferias

Magno Borges/ Agência Mural

Por: Gabriela Carvalho

Notícia

Publicado em 10.05.2024 | 13:50 | Alterado em 10.05.2024 | 15:52

Tempo de leitura: 6 min(s)

Por volta das 20h de sexta-feira, a cozinheira Vilma Aparecida da Cruz, 57, espera o ônibus que a levará para Pacaembu, a 608 km da capital. A jornada leva nove horas e ela chegará ao destino de madrugada. Ao descer do ônibus, irá direto para o complexo penitenciário, onde mostra os documentos para conseguir fazer uma visita.

Essa rotina vivida por ela é a mesma a cada três meses e o único jeito para ver o filho, que está há 12 anos no sistema, e revela a rotina de outras mães que precisam viajar para o interior para manter contato.

“Ele já passou por Guarulhos, Junqueirópolis, Avaré e agora está em Pacaembu, que dá um percurso de 14 horas da minha casa até lá”, revela Vilma. Moradora de Bertioga nos últimos meses, ela construiu 30 anos de história da Cidade Líder, na zona leste de São Paulo.

Ela diz que desde os 18 anos do rapaz, que hoje está com 33, transita pelo sistema penitenciário. Entretanto, hoje faltam apenas três anos para ele concluir a pena.

Assim como Vilma, Rita Garcia*, 50, também encara a estrada e os dias de organização para estar perto do filho. Ela é funcionária administrativa, moradora de Arthur Alvim, na zona leste da capital, e aguarda a liberdade do único filho, que hoje tem 31 anos.

Imagens do Centro de Detenção Provisória I e II da Cidade de Pacaembu/SP @Governo do Estado

Rita enfrenta sete horas de viagem até encontrar o rapaz, que já está no sistema carcerário há um ano e meio e tem previsão de saída no próximo mês de janeiro.

Ao contrário das duas histórias mencionadas, a de Rosana Fernandes*, 65, ainda tem muito chão pela frente: “Meu filho está preso há dois anos, mas ainda falta muito tempo, não sei nem te dizer certinho”.

Aposentada e moradora do Jardim Esther, em São Mateus, na zona leste, ela viaja até Bernardino de Campos, cidade há seis horas de São Paulo. Rosana revela que realiza as visitas ao menos uma vez no mês: “É cansativo, mas eu até gosto de ir. É bom!”.

Mesmo com destinos distintos, a história dessas três mães se encontram no objetivo de se manter presente apesar da realidade do sistema prisional vivida pelos filhos.

Planejamento detalhado!

Além do planejamento financeiro e da organização da viagem, ter a estrada dividindo a família ainda é o pior para Rita Garcia: “Poderiam vir mais pessoas visitar, mas como exige todo esse gasto, venho apenas eu ou a esposa dele. Mas é bem desgastante psicologicamente e financeiramente.”

Realizando as visitas uma vez ao mês, Rita explica que não é só viajar, é preciso planejar a visita: “No total dá uns R$ 900 a cada ida, pois envolve ônibus, comida, jumbo e hospedagem”. Ela ainda conta que precisa se organizar também no trabalho.

‘Para viajar hoje eu não fui trabalhar. E claro que a empresa também não sabe, porque é muito estressante, muito gasto. O peso é enorme para mães, esposas, irmãs. É bem difícil mesmo’

Rita*

A questão do trabalho mencionada por Rita é um dos fatores que a fez optar por não revelar o nome nesta reportagem. Devido ao estigma em volta do assunto, a empresa em que atua não sabe que ela tem um filho no sistema carcerário.

Já a cozinheira Vilma da Cruz explica como é o passo a passo de se organizar uma visita à penitenciária quando a cidade é outra. O planejamento precisa começar um mês antes. “Tudo vira uma correria. Tem os pedidos deles, a reserva da hospedagem, do ônibus, é preciso pensar em tudo”, explica ela.

Existem ônibus fretados que realizam os percursos até as penitenciárias do interior organizados pelas próprias famílias. Neste caso, os ônibus saem próximos da Barra Funda ou do Carandirú e realizam o trajeto completo do fim de semana: deixam e buscam na hospedagem e também levam aos presídios.

A cozinheira também conta que, se é preciso preparar mais alguma coisa para o domingo, elas fazem também na hospedagem para levar pronto no dia seguinte. Mas nem todo mundo tem essa sorte.

‘Tem hotéis que nem aceitam a gente por ser parente de preso. Lá em Junqueirópolis tem um hotel que a gente não pode nem passar perto’

Vilma, cozinheira

Dona do hotel Santo Sono, Patrícia Mendes diz que só não recebe grandes quantidades de hospedes, por conta da estrutura, e por ser uma hospedagem sem cozinha. “Muitas pessoas, apesar de não serem todas, não têm comportamento e educação, comprometendo o conforto de outros hóspedes. Não posso ceder a minha própria cozinha, existem regras e normas”, afirma.

“Por não ceder a cozinha para fazer comida, tem gente que vem xingar e brigar. Nem todas são sem educação, tem hóspedes que recebo até hoje, mas tem essa observação.”

Por que tão longe

Nicholai Candido Mattuella da Silva, 32, é advogado e morador do bairro da Vila Prudente. Ele explica que a Lei de Execuções Penais segue critérios como a separação de presos provisórios de presos condenados definitivamente, além de considerar a natureza dos delitos cometidos.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, em 2022, a população carcerária do Brasil chegou a 830 mil pessoas. Deste número, 621.608 são pessoas já condenadas, enquanto 210.687 estão presas provisoriamente, aguardando julgamento.

O tipo de presídio para o qual a pessoa é designada também depende da primariedade do reeducando, comportamento, tipo de delito e periculosidade. “É comum haver a transferência de presídios e, geralmente, pode ser justificada por superlotação, por exemplo”, explica o advogado.

O especialista também menciona a distância como um fator que dificulta a ressocialização, que é o processo de reintegração do reeducando na sociedade de forma que ele tenha a oportunidade de construir uma nova trajetória longe da criminalidade.

“A ressocialização do reeducando tem como base fundamental a proximidade com o meio social e familiar dele, o que nos leva novamente ao princípio da humanidade”, explica Candido.

‘Pensar na ressocialização sem pensar na família é uma latente violência à constituição’

Nicholai Candido Mattuella da Silva, advogado

Nesses casos, o advogado explica que é imprescindível que haja a manutenção dos vínculos familiares para que exista essa ressocialização do reeducando. Além disso, é preciso existir também parâmetros básicos para que o Estado também aja em prol da ressocialização.

Candido explica que, para garantir os direitos dos detentos nessa situação, é possível “solicitar um requerimento ao juízo de Execução Penal responsável pela execução da pena, ou até mesmo pedir um Habeas Corpus, que também é admitido nos Tribunais Superiores”. Estes são alguns caminhos para tentar garantir o processo de ressocialização próximo à família em casos de cárcere em outra cidade.

São Paulo tem quase 200 mil pessoas presas @Governo do Estado

Desejos de juízo e liberdade!

“Ele fez coisa errada, não tem mais jeito. Tenho outra filha que mora nos Estados Unidos, mas para ele eu só espero que se endireite após cumprir a pena”, diz Rosana Fernandes ao ser questionada sobre o que deseja para o filho neste Dia das Mães.

O pensamento de Rita Garcia é semelhante: “Desejo a toda mãe que o filho saia de lá e se socialize novamente, que volte a ter uma vida normal. É o desejo de todo familiar que tem um ente querido preso”.

“A gente vai na luta justamente para não abandonar, para que eles possam ter o convívio de alguém aqui de fora que fale uma coisa boa, que converse alguma coisa boa, porque lá entre eles são sempre os mesmos assuntos.”

Há 160 mil pessoas presas provisoriamente em SP @Governo do Estado

Além de todas as dificuldades já mencionadas, Vilma da Cruz enfatiza que o que a distância mais atrapalha é a realização de uma comunicação afetiva. “A gente não tem notícias! Agora ainda há um e-mail a cada 15 dias, mas é muito limitado”, relata.

O email funciona sob supervisão dos funcionários. Ela precisa preencher um formulário e a mensagem é repassada ao filho. A partir disso, o detento escreve a resposta num papel e os funcionários repassam para a família a resposta – mas com o conteúdo verificado.

A carta trocada por e-mail é supervisionada pelos funcionários e é direcionada apenas para falar sobre a família, não podendo mencionar datas, números e palavrões.

Segundo Vilma, recentemente o filho foi picado por uma aranha e a situação se agravou. O filho dela chegou a ser internado. “Nesse meio tempo me comuniquei por e-mail e não fiquei sabendo”, adverte.

A cozinheira ainda reitera que a dificuldade da distância não é apenas para as visitas: “Mesmo quando chega na época das saidinhas, que deveria ser o período de reinserção, você tem que bancar tudo, senão ele não consegue vir. Se ele pega cinco dias, é apenas um para ir e outro para voltar. A distância é o grande obstáculo.”

O QUE É A SAÍDA TEMPORÁRIA

A “saidinha” a que Vilma se refere, ou “saída temporária”, é uma das medidas de ressocialização. A saída é destinada a detentos do regime semiaberto que mantêm bom comportamento e que já tenham cumprido 1/6 da pena no caso de réu primário, que é quem não tem condenação anterior, ou 1 ⁄ 4 da pena nos casos de reincidentes.

Há um projeto de lei que determina o fim das “saidinhas”. Em março, o texto foi aprovado pelo Congresso Nacional, mas, em seguida, foi vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O Congresso ainda vai analisar esse veto. Ou seja, apesar de ser um dos caminhos para a ressocialização, a medida tem sofrido ameaças de ser descontinuada.

Ainda assim, com todas essas ressalvas, Vilma, que hoje tenta ir ao menos a cada três meses ver o filho em Pacaembu, enfatiza que nunca abandonou o rapaz ao longo desses anos no sistema prisional.

“Já passei por muita coisa, muitas mudanças no próprio sistema, hoje as revistas são um pouco mais tranquilas. Tem também as perseguições de funcionários, que não é fácil. Por isso, espero que ele entenda que precisa sair dessa vida”, diz.

“Como mãe, a gente se pergunta onde errou, mas espero que ele tenha consciência de que precisa transmitir coisas boas para os filhos, não pode ficar a vida toda atrás de uma grade”, completa.

Vidas Carcerárias Importam

Para ajudar: Se você pretende auxiliar pessoas em cárcere a partir da doação de jumbo com mantimentos e produtos de higiene pessoal e limpeza, a página “Vidas Carcerárias Importam” atua nesse sentido, com informações sobre como realizar doações

Instagram: https://www.instagram.com/projetovci/

* Nomes alterados a pedido das fontes devido à segurança e preservação de imagem.

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Gabriela Carvalho

Jornalista, comunicadora visual, mestra em Mídia e Tecnologia e pós-graduada em Processos Didático-Pedagógico para EaD. É correspondente do Jardim Marília desde 2019. Também é cantora de chuveiro, adora audiovisual e é louca por viagens.

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