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Agência de Jornalismo das periferias

Jacqueline Maria da Silva

Por: Jacqueline Maria da Silva | Jariza Rugiano

Notícia

Publicado em 11.08.2023 | 19:03 | Alterado em 18.08.2023 | 15:53

Tempo de leitura: 5 min(s)

“Você vê muitos mais homens treinando mulheres e ainda falam que não entendemos nada de futebol”, desabafa Maria Simone de Azevedo, 36, uma das poucas técnicas de times femininos de futebol de várzea das periferias de São Paulo, a frente do time Simplicidade, do Jardim Ibirapuera, na zona sul da cidade.

A realidade do “Simplicidade” não é exceção. A pesquisa Mapeamento do Futebol Feminino Varzeano de São Paulo, feito pela PUC-SP, com apoio da Liga Feminina de Futebol Amador e lançada em 2022, revelou que apenas 29,5% dos 95 times entrevistados eram treinados por mulheres na época. O levantamento mapeou 146 equipes femininas na capital paulista.

“Dirigentes mulheres são exceção dentro da gestão esportiva geral, nas federações estaduais e CBF [Confederação Brasileira de Futebol]. Essa exclusão é reproduzida no futebol varzeano”, diz a pesquisadora Aira Bonfim, 38, uma das responsáveis pela pesquisa. Ela reforça que, como a maioria dos entrevistados são homens, eles pouco conseguem identificar conflitos de gênero no futebol.

Da direita para a esquerda: Soraia, Maria Amorim e Aira Bonfim @Hildo Martins

Segundo Aira, as mulheres que querem trabalhar com futebol encontram mais chances nos bastidores dos campeonatos, atuando na separação de documentos dos jogadores, na limpeza do vestiário ou na lavagem dos uniformes.

Um estudo feito pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) confirma a disparidade entre homens e mulheres no futebol, a partir de uma análise das comissões técnicas do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino entre 2013 e 2019. No período, 86% dos cargos técnicos eram ocupados por homens. As mulheres ficavam, na maioria das vezes, nos cargos de auxiliar técnica (22%), massagista (19%), e treinadora (17%), além de árbitras (39%) e de árbitras assistentes (59%).

Pra escanteio

A técnica Maria Simone está há 17 anos comandando o “Simplicidade”, como voluntária, sem qualquer pagamento.

No começo, o time era chamado de “Sem Preconceito”, não à toa: antes de conquistar espaço nos campos, ela chegou a ter que brigar para conseguir espaço para treinar as jogadoras.

E se falta estrutura, faltam também chances de profissionalização para as atletas do Simplicidade, a maioria vindas da zona Sul de São Paulo e das periferias de Embu-Guaçu e Osasco. “É difícil ter [olheiros] na quebrada, principalmente para olhar as meninas jogando”, diz, lembrando que após tantos anos trabalhando como treinadora, viu apenas uma de suas atletas chegar a um time profissional.

O tempo investido em treino é outra grave diferença: só nos times que Simone treina – um masculino e um feminino – os meninos treinam três vezes por semana, durante a tarde, e as meninas apenas uma vez, no sábado à noite.

A técnica Maria Simone treina o time feminino Simplicidade há 17 anos, de forma voluntária @Jacqueline Maria da Silva/ Agência Mural

Neste cenário de dificuldades, não é incomum que, sem apoio, as atletas acabem desistindo dos campos para arrumar trabalhos que garantam o sustento das famílias – ou mesmo para se casarem e serem mães. Dificilmente elas voltam e já com bem menos oportunidades.

E vale atentar que se a situação é desafiadora para as atletas, ela também é penosa para a equipe técnica: “já vi colegas homens que treinam meninos receberem ofertas de clubes profissionais, mas homens que treinam mulheres e treinadoras, nunca”, lamenta.

Inspiração Feminina

Embora sejam minorias, as mulheres no futebol são inspirações para jogadoras, técnicas e árbitras. Um dos nomes mais citados no campeonato de futebol de várzea de São Paulo foi a técnica do Brasil, Pia Sundahage, considerada uma referência – além de Maria Amorim, idealizadora do Maior Festival Feminino de Várzea do Mundo.

Outra figura relevante do futebol e na direção de time foi Maria Cristina Vallim, advogada e assistente social, falecida em maio de 2022. 

Na década de 1980, após a revogação da lei que proibia mulheres de jogarem futebol, Vallim ajudou a fundar e presidir o Negritude Futebol Clube, time masculino, em Artur Alvim, zona leste de São Paulo, onde também morou, no Conjunto Habitacional Padre José de Anchieta. Além disso, foi uma das idealizadoras da Copa Negritude. 

Impedimento

Um dos entraves para as meninas do futebol são os altos custos de profissionalização. As licenças da CBF para trabalhar profissionalmente, apenas em território nacional, chegam a R$10 mil. Quem almeja uma carreira internacional, deve preparar o bolso, porque as taxas saltam para R$20 mil.

“Quem tem esse dinheiro? Conversei com um ex-coordenador na CBF para negociar e um desconto pra ex-jogadoras da seleção brasileira. Esse reconhecimento que eles tanto querem dar para as pioneiras, que lutamos para representar o país?”, disse à Agência Mural a ex-jogadora da seleção Delvanita Souza Santos, a Deva, 42, que brilhou em campo na Copa do Estados Unidos, em 1999.

Luiza Helena Barbosa, 53, de Pirituba, zona norte, já jogou futsal profissional pelo Osasco e investiu uma boa quantia para se formar árbitra. Após 32 anos na função, ela é federada e apita até jogos em outros estados, mas não está inscrita na Confederação Paulista, pois precisa finalizar a faculdade de Educação Física.

Árbrita quer adquirir novas licenças junto à CBF, para ampliar oportunidades no futebol feminino @Arquivo pessoal

Com a licença, poderá ganhar mais e arbitrar em jogos maiores, mas, ao que parece, continuará enfrentando preconceitos no esporte. “Há uma grande diferença de tratamento [entre homens e mulheres]. É como se eles apitassem melhor ou como se elas não devessem estar ali”, diz, lembrando que já ouviu coisas como ‘mulher não sabe apitar’, ‘tem que apitar só lá no fogão’ ou ‘vai lavar uma roupa’.

“Isso revela um país com muita dificuldade de pensar sobre gênero, a partir de um lugar que é desigual também na ocupação de cargos e na elaboração dos salários para homens e mulheres”, diz Aira Bonfim, uma das responsáveis pela pesquisa sobre futebol de várzea feminino.

Cartão vermelho para assédio moral

“Mulher não entrava lá nem pra torcer”, conta Soraia Marques Trindade, 51, se referindo ao campo que preside no Complexo Esportivo do Campo de Marte, na Casa Verde, zona norte de São Paulo.

Há pelo menos 10 anos ela mora em uma casa dentro do Complexo, gerencia um dos campos do local e já fez diversas mudanças para fortalecer as mulheres, como garantir que elas ocupem as arquibancadas e haja times de várzea somente com mulheres.

“Falam que eu sou invasora, me chamam de nomes ofensivos”, diz, frisando que sofre ameaças de morte e de agressões físicas pelo papel que ocupa no time. Ela afirma que já ficou de fora de entrevistas na mídia e de tomadas decisões importantes de clubes por ser mulher. A camiseta oficial do Complexo Esportivo leva o emblema da maioria dos times que jogam no local, exceto do feminino Aliança Casa Verde, que existe há 17 anos.

Um dos casos de machismo mais marcantes ocorreu justamente nas últimas edições do Maior Festival Feminino de Várzea, realizadas no Campo de Marte. “Assim que acabavam os festivais, eles reforçaram as ameaças. Para a terceira edição senti que veio mais forte, aí decidi que não ia participar”, conta. Para organização do evento, ela frisou que não era justo “o maior Festival do mundo ser feito onde uma mulher está sendo agredida e ameaçada “.

Soraia Marques Trindade, presidenta de um dos campos do Complexo Esportivo do Campo de Marte, exibe troféus e medalhas do time de futebol feminino @Hildo Martins

Driblando as dificuldades

Além dos desafios da profissão, as treinadoras ainda precisam lutar para manter os times femininos de várzea, em geral os primeiros a sofrerem cortes quando as verbas dos clubes diminuem.

“Hoje estava faltando peça de uniforme e tive que pedir emprestado. Foi uma luta para conseguir transporte [para participar do Festival de Várzea]”, desabafa Soraia sobre os desafios para participar do evento.

Não é incomum que técnicas e presidentas de times paguem do próprio bolso por alguns serviços no campeonatos, como o de arbitragem. O Mapeamento do Futebol Feminino Varzeano de São Paulo revelou que apenas 36,8% das equipes de mulheres têm patrocínio e 43,2% se mantém com contribuições das próprias jogadoras.

Tanto a técnica quanto a presidente de clube não recebem remuneração para estarem à frente dos times. “Fazemos por amor”, citam. Para sobreviver, gerenciam lanchonetes em seus bairros.

As duas começaram por acaso no futebol. Simone assumiu o “Simplicidade” depois que a antiga técnica abandonou e, para dar conta da nova função, precisava levar o filho ainda pequeno para os treinos. Já Soraia virou presidente depois que o antecessor faleceu, mesmo sem experiência como jogadora de futebol.

Apesar das dificuldades, a presença de mulheres no campo e na gestão do time são fundamentais para incentivar outras a sonharem com o esporte mais popular do mundo – mas ainda não para as mulheres.

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Jacqueline Maria da Silva

Jornalista formada pela Uninove. Capricorniana raiz. Poetisa. Ama natureza e as pessoas. Adora passear. Quer mudar o mundo e tornar o planeta um lugar melhor por meio da comunicação. Correspondente de Cidade Ademar desde 2021. Em agosto de 2023, passou a fazer parte da Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project.

Jariza Rugiano

Jornalista. Gosta de andar por aí de bicicleta, encontrar os amigos, filmes, livros, shows e colecionar memes. Correspondente de São Bernardo do Campo desde 2017.

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