No dia dos avós, Caê Vasconcelos conta a relação com Dona Raimunda: "Em quase 77 anos de vida, ela me viu sair duas vezes do armário e sempre esteve disposta a aprender mais sobre o meu mundo"
Arquivo Pessoal
Por: Caê Vasconcelos
Crônica
Publicado em 26.07.2021 | 15:48 | Alterado em 23.11.2021 | 18:56
Se me pedissem para descrever o amor, eu descreveria Dona Raimunda, minha avó materna. Foi com ela que eu aprendi, há 30 anos, o verdadeiro significado dessa palavra. Quer dizer, aprendo todos os dias porque ela faz questão de mostrar isso nos pequenos gestos da vida.
Na pandemia, ela ganhou um novo neto quando dei início a minha transição social de gênero. A minha transição não começou agora. Estou nesse processo desde 2017, quando comecei a escrever o meu TCC, que foi um livro reportagem sobre pessoas trans no mercado de trabalho. Mas só tive coragem de contar para as pessoas durante a pandemia.
Sabia que seria bem acolhido pela minha avó porque na minha primeira saída de armário (lá em 2008 quando contei que era sapatão) ela foi a primeira da minha família a me mostrar que isso não mudava em nada o amor que ela sentia. Mas, como tinha acabado de sair da casa da minha família para morar no centro da cidade, não sabia como contar.
A minha irmã teve um papel fundamental nisso: ela contou primeiro para o meu tio, que foi o primeiro a me chamar de Caê. Aí meu tio contou para Dona Raimunda, que imediatamente entendeu que não teria mais uma neta. Isso foi entre março e abril de 2020, ou seja, no auge da pandemia. Então demorou um pouco pra gente voltar a se ver – só se ver porque até hoje não nos abraçamos.
Foi quando começamos as chamadas de vídeo para matar a saudade. Ela me disse que talvez poderia errar meu pronome e me chamar pelo antigo nome, mas que iria tentar. E ela nunca errou, até hoje. No comecinho, como ela não conseguia me chamar no masculino nem pelo novo nome, ela começou a me chamar de palavras neutras. Meu amor, meu bem e por aí vai.
Em setembro de 2020 fui visitá-la em seu aniversário (Dona Raimunda é virginiana nata). Mantendo a distância e sem tirar a máscara, para não colocar ela em risco e nem eu, que tenho asma. Ali ela ainda usava as palavras neutras. Um belo dia, em uma das chamadas de vídeos, ela me chamou de meu neto. Foi um dos momentos mais lindos desse processo.
Aí fui contando tudo para ela. Quando retifiquei minha certidão de nascimento, quando retifiquei meu RG.
Quando mostrei o RG novo, mesmo sem saber ler o nome que estava escrito, ela abriu um sorriso imenso. Mas daí veio a primeira preocupação dela: as eleições municipais estavam chegando e não iria conseguir alterar o título de eleitor. Como eu ia votar? Mas tranquilizei que usaria, pela última vez, o antigo RG para dar certo.
Até hoje, a cada ligação ou visita mensal eu conto todos os detalhes da transição para ela (a parte boa, claro, tem coisa ruim que é melhor deixar ela de fora, como as transfobias diárias). A mais recente foi quando contei para ela que vou fazer a mastectomia (cirurgia de retirada das mamas). Ela ficou em choque. Disse para eu não fazer porque qualquer cirurgia é muito perigosa. Mas esse medo não durou cinco minutos. Bastou eu explicar para ela a importância disso para mim (e mostrar alguns meninos trans que tinham feito) que logo passou. E ela me disse: “então vou acender uma velinha para os orixás te proteger”.
Quer mais um exemplo? Teve uma vez que a minha tia me ligou e disse que ela estava muito brava. O motivo? Minha tia tinha me chamado de Caetano e ela brigou com a minha tia falando: o nome dele é Caê. Eu ainda não tinha contado para a minha avó que, no documento, meu nome é Caetano. Caê é o apelido e o nome que uso no jornalismo. Aí ela ficou mais calma quando viu que ninguém estava desrespeitando o meu nome.
Minha avó, que nunca aprendeu a ler ou escrever direito, ensina como o amor é maior do que tudo. Ela é a prova viva de que usar a desculpa da ignorância para jorrar preconceito é errado. Vou contar a história dela para vocês entenderem.
BAIANA NATURALIZADA PAULISTA
Minha avó nasceu na pequena Jequié, cidade do sudoeste da Bahia em 1944. Aos 10 anos, no meio da década de 1950, se mudou para a zona norte de São Paulo, de onde nunca mais saiu. Ela veio para cá com a minha bisavó, dona Laura, e alguns dos seus muitos irmãos e irmãs.
Nos primeiros dois anos, ela morou no Jardim Brasil, mas logo se mudou para a Vila Nova Cachoeirinha. Chegou quando as ruas ainda não estavam asfaltadas e “tudo era só mato”. Hoje, meu bairro não cresceu tanto quanto outras quebradas. Alguns comércios chegaram por lá. Mas ainda tem muito mais casa do que outra coisa.
Aos 14 anos, Dona Raimunda começou a trabalhar no centro da cidade como revisadeira de roupas. Ela quem checava se tudo estava certo nas peças de roupas nas fábricas. Mas, ainda muito nova, foi aposentada por invalidez após descobrir problemas de saúde mental e ser diagnosticada com esquizofrenia. No entanto, parar mesmo ela nunca parou.
Nos anos 1960 ela se casou com Raimundo (que nunca chamei de avô porque minha mãe não considerava ele como pai e não cheguei a conhecer) e teve cinco filhos, que nasceram quase em sequência. Minha mãe, Rosiléia, foi a quarta filha, nascida em 1969. A vida da minha família não foi nada fácil. Minha avó precisou lidar com o alcoolismo do marido e proteger os filhos e ela mesma da agressividade dele. Grana também tinha pouco, o mínimo para sobreviver e alimentar todo mundo.
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Minha avó não foi ensinada a ser uma mãe carinhosa, mas que fazia de tudo pelos filhos. Minha mãe puxou bastante ela nesse quesito. Porém, como avó, veio todo o afeto do mundo. Em 1991 ela ganhou o primeiro neto (eu). Além de avó, ela se tornou madrinha. Ao lado do meu tio, me batizou na famosa Catedral da Sé.
Nessa época, além de mãe e avó, ela era ialorixá – mãe de santo de um terreiro de umbanda que fazia nos fundos das casas de aluguel onde morávamos. Não tenho religião, mas sempre digo a ela que quero continuar esse legado na umbanda. Foi com ela que criei a minha espiritualidade. Lembro-me com carinho do cheiro do incenso de Oxossi (seu orixá) e das arrudas daquele espaço sagrado. Vem daí também o meu amor por arrudas e espadas de São Jorge (que minha avó tem muitas em seu quintal).
Lá na casa da minha família falar “te amo” não é tão frequente. Quem quebra esse padrão lá é minha avó (principalmente comigo) e uma das minhas tias, Rosa, que faz questão de falar toda hora para os sobrinhos o quanto os ama. Todo mundo lá demonstra o amor de outra forma: nos pequenos gestos. E nesse quesito minha avó também é a campeã.
Na infância, ela sempre permitiu que eu fosse eu. Nunca me chamou atenção por usar “roupas de meninos”, andar com skate ou bicicleta do meu primo e jogar bola. Ela também sempre sabia quem eram os meus ídolos e fazia questão que eu soubesse do amor dela por samba, principalmente pelo Martinho da Vila.
Em 2008, quando eu tinha 17 anos, minha família descobriu que eu gostava de meninas. Lembro que, com medo do que poderia acontecer, minha mãe pediu para não contar para a minha avó. E eu tentei. Mas ela sabia quando eu estava triste e pediu para eu contar o que estava acontecendo.
Quando contei, a resposta dela foi: eu sempre soube. Ela percebia o amor platônico que, na época, eu tinha pela minha cantora favorita, Avril Lavigne (que ela não sabia falar o nome). Sempre acolheu as meninas que eu namorei como se fossem netas dela – às vezes até demais. Ela ficava triste quando meus namoros terminavam.
Em julho de 2017, quando perdemos a minha mãe, achei que perderia a minha avó. Ela ficou muito mal e chegou a desmaiar no enterro. No dia seguinte, mesmo muito triste, ela fez questão de cozinhar para mim, coisa que não fazia há anos. E fez a limonada que eu amo – e que só ela sabe fazer daquele jeitinho. Ali percebi, com mais força do que antes, o quanto precisava demonstrar mais o quanto ela é a melhor avó do mundo e o quanto ela foi maravilhosa na vida de toda a família.
Quando escrevi sobre a morte da minha mãe aqui na Mural disse que ela não era a Mulher Maravilha, estava mais para a Jessica Jones. Só esqueci de falar que a Mulher Maravilha era Dona Raimunda e a prova é essa foto dela tomando a vacina em março de 2021. A cada ano de vida, minha avó aprende muito e ensina mais ainda.
Eu queria que toda pessoa trans pudesse ter uma Dona Raimunda em sua vida. Aliás, todas as pessoas do mundo merecem uma Dona Raimunda. Ela pode não entender esse mundo que vivemos hoje e não saber sequer usar um celular, mas ela sabe que o amor é a coisa mais importante do mundo e nenhuma sexualidade ou identidade de gênero deve abalar o afeto.
Jornalista, homem trans e bissexual. Autor do "Transresistência" e repórter especializado em direitos humanos e na editora LGBT+. Correspondente de Vila Nova Cachoeirinha desde 2017.
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