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Agência de Jornalismo das periferias

Leu Britto/Agência Mural

Por: Jacqueline Maria da Silva

Notícia

Publicado em 05.06.2023 | 9:34 | Alterado em 05.06.2023 | 10:10

Tempo de leitura: 6 min(s)
Esta reportagem faz parte do programa de treinamento "Periferias no Clima" e tem apoio da Embaixada e Consulados dos EUA no Brasil flag emb and cons vert - EN Transparent (6)

Maria Amélia Palma, 76, tem na ponta da língua as espécies de animais e árvores que via quando criança. “Tinha papagaio, tatu, rã, vassourinha, araucária, araçá, cambuci, gabiroba, goiaba”. A lembrança é dos anos 1950 no bairro de Jardim Prudência, em Cidade Ademar, local onde nasceu e viveu até a adolescência.

Ela se mudou para o Ipiranga, mas quem permaneceu no distrito da zona sul de São Paulo, como Sônia Maria Sanches, 67, do Jardim Zaíra, acompanhou a transição da floresta para fazenda, sítio, pasto e depois lotes vendidos pelas imobiliárias para a construção de moradias.

A encarregada de crédito aposentada descreve com nostalgia a infância, quando era possível sentir o cheiro dos manacás da serra e das quaresmeiras, apreciar os saguis e até fugir das cobras.

“Eu pescava cará e piaba com uma peneira no rio Zavuvus. Depois que passava a chuva a gente pegava aquelas tábuas grandes, punha em cima do rio e ficava navegando como se tivesse no barquinho”, conta a aposentada. Hoje, esse rio é um córrego que não recebe nenhum cuidado.

Córrego Zavuvus, em Cidade Ademar, na zona sul, onde Sônia pescava quando era criança @Léu Britto/Agência Mural

As mudanças no bioma em Cidade Ademar simbolizam um movimento vivido por diversas periferias da capital, onde a necessidade de moradia e a desigualdade social fizeram com que a mata desse lugar a novos bairros. Tudo isso de forma muito rápida.

Nesta última reportagem da série Periferias no Clima, a Agência Mural traz o relato de moradores da zona sul que viram essa transformação e busca entender como essas alterações causam impacto na vida da população até hoje.

Mudança acelerada

A Agência Mural pediu ao biólogo da Fundação SOS Mata Atlântica, Cesar Pegoraro, para analisar algumas imagens sobre esse passado e também sobre os relatos dos moradores dessa época para entender as mudanças e como o desmatamento mudou a característica da região.

O especialista aponta que a descrição do cenário de Cidade Ademar há mais de 60 anos indica a biodiversidade característica da Mata Atlântica.

Isso o leva a crer que o local comportava esse bioma, e que poderia ser comparado ao que se vê hoje na região de Parelheiros, no extremo sul paulistano.

O poço caipira no quintal de Sônia, que fazia o abastecimento da família até meados dos anos 90, foi aterrado após a chegada do saneamento @Léu Britto/Agência Mural

“Foi de uma vez, as pessoas foram chegando e construindo”, conta Sônia sobre a acelerada ocupação de sua periferia. Os poucos ambientes que lembravam a serra do mar acabaram de uma hora para outra, passando a ter vestígios de urbanização.

O sergipano Domingos da Silva Pereira, 89, mora no Jardim Cidália há pelo menos 60 anos e confirma a mudança rápida, que começou em 1951 com asfaltamento da estrada, a atual Avenida Cupecê, seguida da canalização do rio Cordeiro, que corria em paralelo.

O Cordeiro está registrado em uma foto de 1945, cedida por Maria Amélia, e nela está seu avô, Domênico de Palma. O imigrante italiano está em uma ponte de madeira improvisada e, ao fundo, a floresta com uma enorme araucária se mistura aos campos.

A infância rodeada de verde de Sônia agora são recordadas por fotos @Arquivo Pessoal

Local apontado pelos entrevistados como uma das antiga nascente da região @Léu Britto/Agência Mural

Domênico de Palma no Rio Cordeiro @Arquivo Pessoal

Local apontado pelos entrevistados como uma das antiga nascente da região @Léu Britto/Agência Mural

Segundo Maria Amélia, o rio onde a avó lavava roupa era também fonte de renda dos oleiros da época, que extraíam terra e água das margens para confecção das cerâmicas.

Para Domingos, o Cordeiro era símbolo de lazer. “O rio era limpo, dava pra tomar banho e pescar”.

Os vestígios das afluentes ainda estão presentes na região. Algumas nascentes resistem na forma de esgoto a céu aberto. Uma mina d’água reaparece de tempos em tempos na rua de Domingos. “Vaza água, a prefeitura vem e tapa com cimento”, relata o idoso.

Domingos é morador do bairro Cidade Ademar desde os anos 1960 @Léu Britto/Agência Mural

Os rios estão lá, é o que mostra a plataforma GeoSampa, só que afogados pelo cimento. Bastam chuvas mais fortes para que nem mesmo os três piscinões da região sejam capazes de conter as águas represadas de Cidade Ademar, que invade casas e traz perdas à população.

É o que afirma Maria de Lourdes de Souza, 54, moradora da favela Vila Clara, que fica a metros de um deles.

Ela associa o aumento no volume das chuvas, alagamentos e a piora da qualidade de vida ao “tamponamento” (coberto/ tapado) dos rios e a retirada do verde da região que vem ocorrendo há anos no território, onde vive desde que nasceu.

“Tudo era verde, não tinha essa poluição que tem aqui dentro que traz irritação para o olho e para o nariz”, reclama Jaime Correia Lima, 68, do Jardim Apurá, bairro localizado ao extremo de Pedreira. Ele é um dos primeiros moradores, que chegou em 1983.

O Jardim Apurá é um dos poucos que ainda abrigam remanescentes da Mata Atlântica, com Mata Ombrófila Densa e Mata de Várzea, segundo o Mapa dos Remanescentes de Mata Atlântica do município de São Paulo. Mas segundo o biólogo da Fundação, esse não é um mapa dinâmico.

A redução de áreas verdes na região, entre os anos de 1984 e 2020, pode ser vista em imagens de satélites do Google Earth.

Além disso, os mapas comparativos de 2004 à 2020, do Geosampa, revelam mudanças relacionadas com o uso do solo, de acordo com o biólogo do SOS Mata Atlântica. 

Imagens mostram ocupação de áreas verdes nas últimas décadas @Geosampa

Ele explica que nas regiões mais centrais de Cidade Ademar, em áreas já ocupadas, percebe-se um processo de verticalização, com sombra da paisagem causada pelos prédios, menos arborização e mais áreas com concreto e asfaltamento que tornam o solo impermeável.

“É possível ver esse fenômeno de gentrificação, que expulsa a população das áreas em que vivem pela requalificação do território.”

GENTRIFICAÇÃO: deslocamento de residentes com condições de vida precárias de uma dada rua, mancha urbana ou bairro para outro local, para dar lugar à apropriação de residentes com maior status econômico e cultural.

O especialista destaca ainda que diversos fatores podem ter contribuído para o desmatamento da região, como a necessidade de moradia e a especulação imobiliária.

Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, que trouxe dados do MapBiomas, a zona sul perdeu, de janeiro de 2019 a fevereiro deste ano, 63 hectares de sua vegetação nativa para a construção de moradias. O conteúdo alerta para o envolvimento do crime organizado na derrubada de Mata Atlântica da região.

Menos mata, mais eventos

A manutenção do microclima local oferece conforto térmico e acústico, e melhora a qualidade atmosférica, ou seja, a umidade relativa do ar. “Florestas funcionam como bombas d’água, pois removem a água do subsolo e vão soltando pelas suas folhas na atmosfera”, diz Pegoraro.

Essa água em contato com o ar mais frio –comum às regiões acima do nível do mar, como São Paulo- se condensa e gera a garoa. Era o que ocorria em Cidade Ademar.

Com a queda da umidade nas regiões sul e sudeste do Brasil, causadas pelo desmatamento da Mata Atlântica, houve redução nas garoas e, as chuvas de grande volume, que aconteciam pouco, agora são mais frequentes.

Por outro lado, a perda das árvores e o processo de impermeabilização do solo diminui os pontos de absorção das águas das chuvas. Somado à falta de saneamento e ao acúmulo de lixo, os rios, ao receberem chuva pelas galerias pluviais, entopem e ocasionam as enchentes.

Maria Amélia segura a foto do avô Domênico de Palma, um dos primeiros moradores da região @Léu Britto/Agência Mural

Segundo dados obtidos pela Agência Mural, via Lei de Acesso à Informação, a região da subprefeitura de Cidade Ademar teve 44 chamados de atendimento da Defesa Civil pós enchentes e inundações, só em 2023 – alta de 80% em comparação a todo ano passado. A situação também foi semelhante em outras regiões da zona sul, onde os casos saltaram de 137 para 212.

Nesse caso, o biólogo aponta que os piscinões seriam soluções paliativas que ainda deixam sujeira e mau cheiro para os moradores.

“A cidade precisa ser pensada com construções de soluções ecológicas como captação da água da chuvas, áreas de permeáveis, tratamento de esgoto nas próprias casas”

Cesar Pegoraro, biólogo da Fundação SOS Mata Atlântica

De acordo com os entrevistados, o desenvolvimento de Cidade Ademar e Pedreira trouxe benefícios, como a chegada de escolas, transporte e água encanada, mas também custou.

“A gente tinha mais liberdade, a qualidade de vida mudou, nem dá pra por o pé no chão, andar descalço em contato com a natureza”, desabafa Maria de Lourdes.

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Jacqueline Maria da Silva

Jornalista formada pela Uninove. Capricorniana raiz. Poetisa. Ama natureza e as pessoas. Adora passear. Quer mudar o mundo e tornar o planeta um lugar melhor por meio da comunicação. Correspondente de Cidade Ademar desde 2021. Em agosto de 2023, passou a fazer parte da Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project.

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