Moradora da segunda maior favela da cidade fala sobre as transformações na região desde os anos 1980
Arquivo Pessoal
Por: Glória Maria
Notícia
Publicado em 30.11.2023 | 13:50 | Alterado em 30.11.2023 | 15:36
Era uma manhã de chuva e frio, um “frio que doía os ossos”, quando Vanda Maria da Silva, 75, chegou a Paraisópolis, favela da zona sul de São Paulo. O lugar era cheio de ladeiras, com um barro avermelhado, muitas bananeiras e um córrego conhecido como Antonico, ainda limpo e com peixinhos.
“É um tempo que não volta mais, uma época mais tranquila na comunidade, com mais vegetação e espaço nas ruas para as crianças brincarem sem esse aglomerado de pessoas e casas”, afirma.
Em novembro, mês em que é marcado o Dia das Favelas, a Agência Mural publicou um especial sobre onde estão as comunidades da cidade e como elas se espalharam pela capital. Nesta última parte, contamos a história de Vanda, que chegou a Paraisópolis antes do local se transformar na segunda maior favela da capital com mais de 100 mil habitantes.
Foi aos 29 anos, entre os anos de 1977 e 1978, que Vanda, natural de Recife (PE), chegou ao bairro com três filhas e dois filhos, a pedido do marido, Floro Lira. Ele havia vindo antes, pois conseguiu emprego em uma empresa de metalurgia e por ter dois irmãos na capital, um que morava em Paraisópolis e outro na Vila Joaniza – esse último também na zona sul.
Vanda só conseguiu encontrar uma semelhança entre Recife, a terra natal, e a chegada a Paraisópolis: a pobreza.
Ela comenta que os vizinhos também têm histórias semelhantes às dela. A maioria deles é nordestina ou nortista e saiu de suas cidades em busca de uma vida melhor em São Paulo.
‘É um retrato da comunidade, uma população com histórias semelhantes, que lutou para construir suas casas de alvenaria com muito esforço, trabalhando duro para criar suas famílias’
Vanda, moradora de Paraisópolis
A moradora recorda que, quando chegou, o local onde viveria se chamava rua Campinas e ela era uma das primeiras moradoras. Foi no ano de 1988 que passou a ser conhecida como Pasquale Gallupi, principal via que atravessa a comunidade de uma das entradas até a outra, proporcionando acesso às avenidas Hebe Camargo e Giovanni Gronchi.
Em um lote, ela e o marido construíram um barraco de dois cômodos, com cozinha e o quarto, onde foi se ajeitando com a família. A cozinha tinha um fogão, geladeira, armário e duas beliches onde as crianças dormiam. No outro cômodo, um quarto com uma cama de casal.
No novo território, ela conseguiu um trabalho como empregada doméstica em um prédio do Morumbi, para o qual ia a pé todos os dias, já que ficava perto de casa. Uma caminhada longa pelas vias da comunidade, com casas distantes umas das outras – eram só quatro vizinhos.
A distância entre as casas era tanta que ela se lembra de um orelhão na esquina, onde recebia ligações de parentes que viviam no Nordeste. Os vizinhos, que moravam ao lado do telefone, gritavam o nome dela para que ela ouvisse, devido ao espaço que permitia que o eco da voz se espalhasse, algo impossível de acontecer hoje, com várias casas construídas umas sobre as outras.
Vanda sente saudades de algumas coisas daquela época, como o silêncio e o vento que soprava nas bananeiras. A situação mudou bastante.
“Aqui é um lugar muito agitado, tem gente na rua 24 horas. Aqui da minha casa eu nunca tenho sossego, por morar na rua principal da comunidade fico exposta aos barulhos de motos e carros que passam o tempo todo”, comenta.
O silêncio era tanto na comunidade que só passavam três carros: o do peixe, da cândida e o fusca do falecido marido, ele que foi o primeiro morador da rua a ter um veículo.
As boas lembranças também são acompanhadas de muitas dificuldades para qualquer pessoa que tenha migrado.
Paraisópolis surgiu num espaço em que antes era a Fazenda Morumbi. Vanda e a família já ouviram diversas vezes a afirmação de que as populações que estavam ocupando o bairro seriam retiradas, mas isso não aconteceu.
“Imagine só, um pessoal pobre tentando começar a vida e ouvir esses boatos, trazia a insegurança sobre a moradia, né, mas ainda bem que não nos tiraram daqui”, afirma, com um respirar de alívio.
Além disso, a falta de estrutura também era um desafio. A água só era possível por causa dos poços e a energia só um morador possuía, por causa de um poste. Com isso, ele fornecia luz para outras pessoas, mas tinha que pagar um valor fixo para usar. Vanda lembra que a energia era tão fraca que não dava nem para assistir TV.
Outra dificuldade que com o tempo foi sendo aliviada era o transporte público. Ele chegou em 1985, mas não dava conta das necessidades dos moradores pela demora e quantidade de pessoas. Eram necessários duas conduções para chegar em Pinheiros ou Santo Amaro, regiões consideravelmente próximas. Além disso, era preciso fazer uma longa caminhada até o ponto.
Por conta disso, moradores colocaram nas ruas kombis para reforçar a locomoção – o transporte clandestino que circulou por um tempo. Os micro-ônibus da SPtrans chegaram a circular pelo bairro, mas por conta do congestionamento, hoje passam apenas nas avenidas próximas.
Ela também comenta sobre o preconceito e o racismo contra os moradores. Era comum dizer que era da Vila Andrade em entrevistas de emprego para não ser preterido por ser morador da favela.
Dois espaços de lazer que marcaram a vida de Vanda na comunidade foram a igreja católica, onde ela frequenta até hoje e realiza os terços em casa, e o Real Clube Renascença, time de várzea de Paraisópolis, no qual ela foi presidente entre 1990 e 2003.
A entrada dela na função se deu a partir das idas aos campos para assistir o marido e os filhos jogarem. Com o afastamento do presidente, a diretoria nomeou Vanda que abraçou de coração. Ela já viajou para outros estados para acompanhar o time nas partidas.
Ela comenta que a equipe era popular por sempre ser vice, exceto no último ano quando foram campeões do Campeonato de Paraisópolis.
Um dos sonhos dela para Paraisópolis são os respiros, entre uma casa e outra. “A comunidade precisa de respiros, nem o vento sentimos mais, por causa do número de casas amontoadas. Não tem mais espaço no chão”, conta.
Ela também almeja praça, lazer para os idosos e crianças, além de um hospital. “Outra coisa que atrapalha muito tem sido andar pelas ruas, porque as ruas são estreitas e cheias de carros parados, gerando um trânsito de pessoas e automóveis que vira um inferno, principalmente pra quem é idoso e tem um ritmo devagar nas ladeiras”, finaliza.
Enquanto espera por essas melhoras, ela aponta que os quase 50 anos na comunidade ajudaram ela a aprender a importância da união. “Em todo esse tempo de Paraisópolis, aprendi que as pessoas são prestativas. Morar nessa comunidade me fez aprender sobre empatia e amor quando o próximo precisa.”
Moradora de Paraisópolis, jornalista, produtora audiovisual e co-fundadora do estúdio 7 Notas, espaço que acolhe artistas locais e movimentando artes
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