Filipe Barbosa
Por: Egberto Santana
Notícia
Publicado em 10.06.2022 | 19:48 | Alterado em 27.02.2024 | 16:38
Quem vai até um cinema em São Paulo dá de cara com preços altos e poucas opções de filmes. Além disso, para quem mora nas periferias, há um grande deslocamento para chegar a esses espaços. Pensando nesses obstáculos, moradores criaram e sustentam cineclubes, na capital e cidades da Grande São Paulo.
Embora exista a atuação da Spcine, agência estatal de fomento do audiovisual com cerca de 20 instalações de cinema espalhadas pelas bordas da cidade, mais da metade dos locais permanece de portas fechadas em 2022. Uma saída tem sido o retorno dos cinemas de shopping, mas que se esbarra na questão dos ingressos caros.
Aí entra a importância dos cineclubes, que são espaços voltados para exibição de filmes e debates, gratuitos ou a um preço acessível. A Agência Mural selecionou quatro deles e conta um pouco da história de cada um. Confira:
Na Vila Teresinha, na Brasilândia, zona norte de São Paulo, a ideia de criar um cineclube tomou forma em 2016, a partir de uma oficina de roteiro de ficção lecionada por Tatiane Góis, 33, educadora social, atriz e líder comunitária.
Antes, ela organizava e produzia shows de bandas do movimento punk, sendo a primeira mulher negra líder de banda punk na região. Mas, após presenciar casos de racismo e machismo e ter sofrido ameaças, rompeu com o movimento e se voltou para a juventude do bairro.
As aulas tiveram início no período de férias das crianças dentro da própria casa de Tatiane, embaixo de uma laje coberta. Do roteiro, passou para a oficina de teatro, usando do espaço da laje para improvisação de cenas e instalação de cortinas, gerando a companhia Cia Teatro de Laje.
Em 2017, o grupo recebeu uma doação de um amigo, possibilitando a compra de um projetor para a exibição dos filmes e a realização de uma mostra de cinema no escadão do bairro Jardim Guarani, também no distrito da Brasilândia.
“Os meninos fizeram o roteiro e queriam interpretar, montar, produzir”, relata Tatiane. Entre a faixa etária da galera que compõe o grupo, é possível encontrar adolescentes de 14 anos fazendo a captação de áudio dos filmes, atores de 30 e uma assistente de câmera de 15.
O projeto continuou o aprofundamento no audiovisual, então um novo ramo da Cia Teatro de Laje foi aberto e a Borderline Filmes surgiu.
Além dos filmes feitos pelo grupo na zona norte, há também exibições de animações infantis para as crianças no “Cine Laje”.
“Põe a senha do streaming e coloca para eles assistirem. Filmes como ‘Encanto’, que a maioria das crianças que estudam com a minha filha, por exemplo, já assistiram e a comunidade ainda não tinha assistido. A gente foi lá e colocou”, diz Tatiane.
O filme “Luca” foi outra animação exibida no começo do ano. Nos cartazes de divulgação do filme, além do endereço, data e horário, há também as indicações: “Uso de máscara obrigatório, cinema gratuito para toda a comunidade com direito a pipoca e refrigerante”. E mais: “Traga seu banquinho!”
Além das crianças, família e vizinhos participam das atividades.
O cinema, porém, já não é mais na laje coberta. Durante uma chuva forte, a estrutura não aguentou e em fevereiro de 2021 as telhas caíram.
“Eu tinha entrado na garagem um dia antes, para fotografar o espaço e pedir ajuda”, comenta a educadora social responsável pela Cia Teatro de Laje.
“A gente perdeu tudo com esse desmoronamento”, conta. Entre os itens levados pelo desastre, estavam cortinas do teatro, livros, fantasias, entre outros equipamentos usados nas produções. Uma vaquinha foi feita para a reforma, mas o dinheiro não foi o suficiente.
O entulho ficou no local durante um ano. Quando foi retirado, o espaço voltou a funcionar, com as aulas e com o cinema, mas sem a laje, a céu aberto.
Ao longo dos anos de pandemia, o projeto foi interrompido e Tatiane focou no auxílio para as famílias da comunidade, atuando na doação de cestas básicas. Mesmo parado, alguns filmes foram realizados com viés da ação social.
Agora, Tatiane planeja a realização de uma série produzida pelos jovens do projeto, além de rodar por mostras, festivais e bibliotecas com o filme “Na Ponta do Lápis”, da Borderline Filmes. Esse e outros filmes podem ser encontrados no canal da produtora no YouTube.
Endereço: Rua Alfredo Lúcio, 518, Vila Teresinha – São Paulo
Exibições: Todos os domingos (exceto em dias chuvosos)
Preço: Gratuito
Se no caso da Cia Teatro de Laje o espaço aproveitado foi da própria casa dos organizadores, em Guaianases, na zona leste, é num campo de futebol de várzea que as exibições do Cine Campinho têm chão.
O projeto é liderado por Pedro Oliveira, 37, sociólogo e pós-graduando em cidades, políticas públicas e participação popular pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). A ideia surgiu em 2006, a partir da reunião entre amigos com o intuito de assistir a filmes.
Com o passar do tempo, cada vez mais pessoas foram se interessando, as casas ficaram pequenas e logo mudaram para botecos. Estes, mais pequenos ainda para o pessoal que colava nos rolês.
“O único espaço mais aberto que tinha no território era num campo de futebol de várzea. E aí a gente falou, ‘nesse campo cabe mais gente’. Só que daí precisava de equipamentos maiores, né?”, conta Pedro.
Para poder realizar a ação no campo com os equipamentos necessários, Pedro e a equipe do Cine Campinho escreveram um projeto para o edital do VAI (Valorização de Iniciativas Culturais) em São Paulo.
O VAI foi criado pela prefeitura em 2003 para apoiar financeiramente coletivos culturais da cidade, com foco em regiões com falta de ferramentas e meios possíveis para ações culturais.
A atuação do cineclube começou em 2007, depois de ter sido selecionado pelo edital, permitindo a compra de equipamentos de som, de audiovisual, câmera, projetor e notebook. Desde então, o projeto não parou.
Entre os filmes que passaram pela tela do campo estão “Cidade de Deus”, “Uma Onda no Ar – Rádio Favela” e “O Paí, Ó”.
O processo de escolha dos filmes era feito da seguinte forma: a equipe do projeto colocava urnas espalhadas pelos comércios, escolas e postos de saúde, selecionava 10 filmes e os moradores votavam.
Para a exibição, o grupo tinha uma parceria com as locadoras da região, que disponibilizavam as cópias dos filmes no dia do encontro.
Naquela época e nos dias atuais, a curadoria procura priorizar obras que dialoguem com questões sobre as periferias, desigualdade social e ausência do estado.
Há também a escolha de filmes que passam as perspectivas de lutas e histórias dos povos indígenas.
Os membros do cineclube também começaram a dominar as técnicas de produção, transformando-o em um espaço de formação, profusão e exibição de novos filmes sobre a realidade vivida pelos moradores da região e com assuntos que debatem etnia, gênero e sexualidade.
“Temas que nos atravessam diretamente e nos colocam nesse lugar para poder conversar”, comenta o sociólogo.
São exibidos filmes, documentários e clipes, todos feitos por coletivos e produtores que venham das periferias. Em 2019, inclusive, exibiram dentro do campo o documentário “Da Terra à Tela”, cuja trama conta a história do Cine Campinho, com imagens dos moradores e a trajetória do projeto. “Memórias de Luta” foi outro filme exibido na época, que também traçava a história do cineclube.
Com mais de 10 anos de trabalho, a pandemia foi o único momento em que o Cine Campinho parou e voltou o olhar para fora do gramado e da telona.
“[No primeiro ano da pandemia, fizemos] contato com outras organizações, a gente começa a receber cestas básicas, começa a comprar alguns materiais de higiene, fazendo kit e doando para algumas famílias.”
Em 2021, o coletivo retornou, mas focando na exibição online, permitindo o contato com os filmes a partir de outras periferias distantes e até mesmo acessos de fora do país, como, por exemplo, Colômbia, Bolívia e Argentina.
No mesmo ano, em 14 de novembro, a volta para o gramado marcou também o primeiro lançamento da revista “Central Periférica”, os livros “Reflexões Periféricas” e “Periferias Insurgentes”, em parceria com o Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação e o Observatório de Coletivos Culturais da Periferia de São Paulo, ligados com a USP (Universidade de São Paulo).
Para Pedro, a escolha de lançar os livros dentro do campo de futebol foi “uma forma de trazer a universidade e partilhar o conhecimento teórico com a população que tanto ajudou a construir e formular as ideias, que fez com que a gente refletisse e se sentisse provocado a partir desse espaço [o Cine Campinho]”.
Todos os clipes e filmes realizados pelo coletivo estão disponíveis no canal do YouTube do cineclube.
Endereço: Rua Alécio Prates, s/b, Jardim Bandeirantes, Lajeado – São Paulo
Exibições: Terceiro sábado de cada mês, das 17h às 23h
Preço: Gratuito
Outro coletivo que também teve apoio do VAI foi o Cine Social Club, atuante no distrito de Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital paulista. Foi criado por Filipe Barbosa, 25, estudante de comunicação social na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
O cineclube teve início quando Filipe e um amigo participaram de um curso de cinema em Paraisópolis, na zona sul, organizado pela Associação Cultural Kinoforum.
No trabalho final do curso, a dupla fez um curta-metragem que foi exibido no Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo. Teve sessões em espaços como o Espaço Itaú de Cinema (a 33km da Cidade Tiradentes), na Augusta, e no Centro Cultural Vergueiro (29 km), ambos localizados em regiões centrais de São Paulo.
“Por que tinha que sair do nosso bairro, do nosso território, se deslocar tudo isso para que a gente pudesse, nesses espaços, realizar essas paradas?”, perguntou Filipe.
Dessas reflexões surgiu um grupo de estudos entre a dupla e mais um amigo, e logo expandiu para um debate mais aberto. Ali, outras pessoas poderiam participar da exibição de filmes e propor conversas.
Em Cidade Tiradentes, há somente uma sala de cinema. Fica no Centro de Formação Cultural e, desde 2016, tem a gestão da Spcine. Porém, Filipe conta que muitas pessoas não conhecem o espaço.
“Queríamos inverter essa dinâmica e fazer com que o cinema chegasse até as pessoas e não que as pessoas fossem até o cinema”
Filipe Barbosa, 25
O Cine Social Club nasceu em 2019, quando o grupo conseguiu fincar uma sala para exibição na quadra Juscelino Kubitschek. Algumas exibições também aconteceram dentro do Centro Cultural Juscelino, em Guaianases.
A ideia de escolha dos filmes girava em torno de produções da América Latina, África e Brasil, focando numa ideia de cinema fora das grandes bilheterias, num chamado cinema terceiro-mundista.
Houve também a Mostra Olhares Negros, sobre a questão racial no mundo, que contou com o filme “Faça a Coisa Certa”, do diretor Spike Lee.
A entrada do VAI rolou em 2020, bem no início da pandemia, quando o coletivo pensava em continuar as ações no presencial.
Ao abraçar o online, a escolha dos filmes se voltou para obras que falassem sobre o território da Cidade Tiradentes, tendo em vista que a circulação pelo bairro já não era uma opção.
Além disso, Barbosa também menciona a necessidade de ver as pessoas da quebrada onde mora sendo representadas nos filmes.
“Tudo que se pesquisa no Google sobre Cidade Tiradentes é ‘bairro com menor expectativa de vida da cidade de São Paulo’, ‘Cidade Tiradentes é perigoso’. Então, a gente buscava promover uma nova representação do nosso bairro”, destaca ele.
Entre os filmes exibidos durante esse período estavam “Uma cidade chamada Cidade Tiradentes” da diretora Lilian Solá Santiago, e o documentário “Cê Quer Mentir pra Preta Velha?”, que traz a história do bairro contada a partir de mulheres pretas.
Os filmes e debates podem ser assistidos no canal do Youtube do Cine Social Club.
Atualmente, o projeto está à procura de novos lugares para exibição, além de membros para compor o coletivo e continuar a atuação.
E Filipe trabalha no circuito cineclubista da Spcine, atuando na escolha de filmes que serão exibidos nas casas de cultura das periferias da cidade. A iniciativa é uma política afirmativa.
No início de 2022, foi anunciada a implementação de mais 10 salas da Spcine nas periferias de São Paulo. Entre os locais escolhidos, estão as unidades dos CEUs (Centros Educacionais Unificados) de Guarapiranga, Rosa da China, Navegantes, Água Azul, Pêra Marmelo, Paraisópolis, Alvarenga, Três Pontes, Tiquatira e São Mateus. O funcionamento das novas salas estava previsto para maio deste ano.
Endereço: Rua Inácio Monteiro, Jardim São Paulo – São Paulo
Endereço: Avenida Utaro Kanai, 546, Centro Cultural Cohab Juscelino – São Paulo
Em pausa: À procura de novos membros e locais
Na região metropolitana, o acesso ao cinema também é escasso. É o caso do município de Arujá, na Grande São Paulo, onde um grupo de amigos resolveu criar um cineclube, em fevereiro de 2022, ao perceber que o foco de quem buscava por um cinema na região era sempre fora da cidade ou em um shopping.
Ainda sem nome, mas em atividade, o projeto se reúne na Casa Nossa, uma Cooperativa Cultural coordenada por Robson Cervera de Oliveira, 32, músico e professor de música.
O local possui um propósito de movimentar e reunir de forma autônoma diversas ações artísticas da cidade, entre músicos, dançarinos, escritores e, claro, o cinema, com o cineclube.
Além da questão regional, a ideia do cineclube foi gerada quando Robson participou de uma oficina de história do cinema lecionada por Gustavo Ruas de Morais, 24, produtor audiovisual e realizador de filmes.
Durante essas oficinas, Gustavo mencionou filmes que tinham trilha sonora ao vivo, em uma época em que o cinema era mudo. Robson, que também é músico, se animou com o tema e pensou na possibilidade de exibir um filme e fazer um som ao mesmo tempo. Ambos tocam na banda Gótico Tropical, com influências de trilhas de filmes de terror, que vão do rock psicodélico, progressivo e metal, até marchinhas de carnaval.
Letícia Lopes da Silva, 26, psicóloga e amiga de Robson, também estava presente. Da ideia da trilha sonora ao vivo, ficou apenas a vontade de se juntarem para assistir filme e trocar ideia. E, o espaço, já tinha: na Casa Nossa, localizada no bairro Center Ville, próximo ao centro e pontos de ônibus. Agora só faltava pensar em quais filmes seriam exibidos e chamar o pessoal.
A primeira exibição foi do filme “Nosferatu”, clássica obra do expressionismo alemão de 1922, uma das mais importantes fases da história do cinema. No mês de aniversário do filme, em março, Gustavo e Robson tocaram a trilha sonora juntamente com a exibição do longa.
“A galera gostou bastante, divulgamos no Instagram, no WhatsApp. Cada um faz parte de um círculo social e conseguimos divulgar desse jeito”, diz Letícia.
O fato de cada um morar em locais extremos da cidade também proporcionou uma comunicação boca a boca em cada região.Gustavo mora no Parque Rodrigo Barreto, próximo à Cooperativa, Letícia está no Jardim Rincão e Robson no Arujazinho III.
A escolha dos filmes é decidida de acordo com o timing do momento, seja algum longa em repercussão ou alguma data comemorativa.
A última exibição foi em 7 de abril com o filme “Coda – No Ritmo do Coração”, vencedor do Oscar de melhor filme em 2022.
A cidade não possui um cinema próprio, por isso o grupo comenta sobre o deslocamento das pessoas em busca de entretenimento em outras cidades.
“Arujá tem um caráter de cidade-dormitório, apesar de ter indústria há bastante tempo, ter um comércio crescendo. Ainda tem muito aquela coisa: ‘Quer alguma coisa? Vai para Mogi, vai para Guarulhos, São Paulo”, conta Robson.
Antes do grupo se reunir para a criação do cineclube, Gustavo havia criado o Cine Arujá, em 2021, com apoio da Lei Aldir Blanc – política de emergência financeira para fomento do setor cultural em meio à crise da pandemia, que permitia, entre outras atividades, a criação de festivais e mostras.
O projeto foi feito de forma totalmente online e contou com exibição de 30 produções, de diretores do Alto Tietê e de outras regiões do país, com transmissões ao vivo de debates com as equipes dos filmes.
Foi com o sucesso do Cine Arujá que Gustavo conseguiu apoio da Prefeitura de Arujá na execução das oficinas e daí surgiu o encontro entre os amigos para a formação do cineclube.
Sobre o impacto e importância do cineclube na cidade, o grupo diz que ainda é muito cedo para perceber alguma mudança, mas ressalta a questão do contato entre os três, proporcionado pelos filmes e a formação de ideias e conhecimentos nas discussões.
“O cineclube tem o poder de girar uma economia criativa no momento que faz o tio do cachorro-quente conseguir vender mais no dia do evento. Então, é uma coisa que dá vontade de continuar investindo, de fazer crescer, para que tenha resultado”, afirma Gustavo.
Endereço: Rua Elpidio Ferreira Guimarães, 35, Center Ville – Arujá
Exibições: Todo segundo domingo do mês
Preço: O quanto puder pagar acima de R$ 5, por sessão, para a manutenção do local
Jornalista, também é crítico de cinema e redator. Sempre ouvindo ou assistindo alguma coisa, do novo ao velho, do longa-metragem ao reels do Instagram ou Tik Tok. Correspondente de Poá desde 2021.
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