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Neide e as corredoras do Capão Redondo

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Por: Gisele Alexandre

Notícia

Publicado em 08.03.2019 | 8:43 | Alterado em 23.12.2019 | 12:36

RESUMO

No Dia Internacional da Mulher, a história de Neide que fez de um exercício simples num parque do Capão Redondo um projeto que atende 700 pessoas

Tempo de leitura: 5 min(s)

Antes da luz do sol dar as caras no Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, algumas mulheres já ocupam as ruas no entorno do Parque Ecológico Santo Dias, na Cohab Adventista, preparadas para correr.

Não foi sempre assim na Cohab construída na década de 1980, após a desapropriação de uma fazenda. O boom de “atletas” do Capão Redondo foi motivado por uma baiana franzina apaixonada por esportes, que saiu da terra natal aos 6 anos e chegou em São Paulo com sonho de ser feliz.

Há 20 anos, Marineide Santos Silva, 58, ou apenas Neide Santos como é conhecida, começou a treinar voluntariamente uma das vizinhas. Maria Gonçalves, uma retirante nordestina acostumada a caminhar longas distâncias até a lavoura, na época com 60 anos de idade, queria voltar a se movimentar.

“As pessoas olhavam a gente correndo e diziam: se essa velhinha corre com a Neide eu também posso correr. A Maria Gonçalves foi quem desencadeou tudo isso”, conta Neide.

Não demorou para as duas corredoras ganharem dezenas de outras companheiras, todas moradoras do bairro da COHAB Adventista. Com tantas mulheres praticando esporte, Neide começou a organizar treinos por turmas e, para isso, precisava de um espaço para reunir as alunas e nenhum local seria mais apropriado do que “seu quintal”: o Parque Santo Dias.

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Atividades são no Parque Santo Dias (Gisele Alexandre/Agência Mural)

“Aos poucos com muita parceria e conversação, fazendo trabalhos voluntários e participando das reuniões, fomos conquistando espaço para realizar nossas atividades”, lembra. A parceria foi tão bem sucedida que permanece até hoje.

Em janeiro de 1999, Neide decidiu criar a equipe Corredoras do Parque Santo Dias. Durante a semana, Neide se dividia entre o trabalho como costureira, as tarefas de casa, o treino com as mulheres e, aos sábados, passou também a atender as crianças da comunidade. “Eu não tinha a dimensão que o que eu fazia era importante, pra mim o que eu fazia outras pessoas também faziam”, ressalta.

Alice Gismonti, diretora de impacto comunitário da Nike do Brasil, estava à procura de mulheres inspiradoras no esporte, chegou de surpresa em uma aula no parque e pediu para conhecer o projeto. Em 2009, as Corredoras do Parque Santo Dias foram contempladas com um prêmio de R$ 5 mil no Game Changers, uma iniciativa da Nike em parceria com a ONG Ashoka.

Depois do prêmio, muitas pessoas e instituições surgiram para ajudá-la. Foi quando se estabeleceu a Associação Projeto Vida Corrida, iniciativa patrocinada pela Nike Brasil desde 2009. De lá pra cá ela já participou de vários prêmios, documentários, publicidade, palestras e um TEDx em São Paulo, evento de palestras.

Hoje o Projeto Vida Corrida atende mais de 700 pessoas, a maioria mulheres e crianças, todas do Capão Redondo. Além dos treinos de atletismo as participantes do projeto também fazem treinamento funcional. As atividades acontecem no Parque Ecológico Santo Dias às segundas, quartas e sextas-feiras faça chuva ou sol.

“Lembra da menina que sonhava ser feliz? Eu encontrei a minha felicidade e ela está aqui, mudando a vida das pessoas”, diz Neide.

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Grupo estima 700 participantes durante toda a semana (Gisele Alexandre/Agência Mural)

IMPACTO

O Parque Ecológico Santo Dias, que durante muito tempo era visto apenas como um ponto de encontro para usuários de drogas, se tornou um espaço de convivência familiar e prática esportiva cheio de vida.

Neide conta que não tem vontade de ampliar o projeto para outras regiões, porque aqui ela conhece cada um dos alunos e alunas. Ao longo dos 20 anos de trabalho, ela diz que teve apenas duas alunas grávidas na adolescência, um indicador de saúde muito importante, se considerarmos que no Brasil a cada mil meninas com idade entre 15 e 19 anos, 68 engravidam, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde.

“Temos 30% de mulheres com nível universitário no projeto. Comecei a fazer parcerias com universidades para que elas pudessem fazer faculdade”, afirma Neide, que neste ano pretende retomar os estudos que tiveram de ser interrompidos por causa da vida agitada.

O Capão Redondo também ganhou atletas profissionais. É o caso de Julio Cezar Agripino Santos, atleta fundista paraolímpico e Jonathan Santos Rocha, promessa para equipe de atletismo das Olimpíadas em 2020, ex-alunos do projeto.

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Neide mantém projeto há 20 anos (João Vallerio/Divulgação)

PAIXÃO PELO ESPORTE

Nascida em 1960 em Porto Seguro (BA), Marineide veio para São Paulo ainda criança, por uma família que a adotou. “Fui parar em uma oficina de costura no bairro do Brás [região central] onde fiquei até os 10 anos. Não ia pra escola, não brincava, só trabalhava. Sofri todos os abusos e violências que você pode imaginar”.

Neide lembra que certo dia passou mal na oficina de costura e teve que ser levada ao hospital. Lá contou o que sofria e a ajudaram a deixar o local. Só depois disso, em 1971, aos 11 anos de idade, Neide foi registrada pela mãe biológica que continuava na Bahia com outros cinco filhos.

A família que Neide conheceu no hospital a livrou do trabalho infantil no Brás e a levou para morar em uma comunidade entre o Capão Redondo e o Jardim Ângela. Ao conseguir a certidão de nascimento, ela finalmente pode iniciar os estudos.

Na Escola Estadual Professora Davina Aguiar Dias, Neide conheceu a Educação Física. “Pra mim aquela aula era uma brincadeira, era a minha diversão. Eu fazia todas as modalidades e era minha paixão”, conta.

Foi durante um campeonato interescolar que a menina franzina foi chamada para competir no revezamento 4×100 e conquistou o melhor tempo. “Aquela foi a primeira vez que eu ganhei algo novo”.

Depois da primeira medalha a menina nunca mais parou de correr. “Meu sonho olímpico se realizou no ano de 2016, quando fui convidada para conduzir a Tocha Olímpica na cidade que me acolheu. Foi incrível. Toda minha comunidade estava nos meus 200 metros”, lembra emocionada.

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VÍTIMA DE VIOLÊNCIA   

Neide se mudou para a Cohab Adventista em 1986. Antes, viveu no Jardim Ângela, também na zona sul. Na época, conheceu várias lideranças, inclusive o operário Santo Dias da Silva, um importante militante da região do Capão Redondo. Santo Dias foi morto por policiais em 1979 durante uma greve, e foi homenageado com o nome do Parque Ecológico.

Aos 18, Neide ficou grávida do primeiro filho e dois anos depois de formar a própria família, o marido foi morto por um policial militar. “Segundo a polícia meu marido era suspeito, mas acredito piamente que meu marido foi assassinado pelo simples fato de ser negro e estar depois da meia noite na rua”, afirma.

Ela conta no dia em que antecedeu a morte do marido, ele fazia bico de pedreiro em outra região da cidade. Como acabou saindo tarde do trabalho, não conseguiu ônibus para voltar para casa. Chegou até Santo Amaro de onde caminhava em direção ao Capão Redondo, quando foi abordado: “segundo a polícia ele não obedeceu a voz de comando”.

Neide casou-se novamente e teve mais dois filhos. Neide continuava trabalhando como costureira, treinava corrida com as mulheres da comunidade e começou a se envolver com trabalho social.

Em 2000, ela perdeu o primogênito, Mark. Casado e pai de dois filhos, ele foi assassinado durante um assalto por um adolescente de 14 anos.“Eu enterrei o meu filho. Meu mundo desabou porque aconteceu o inverso. Eu imaginava que meus filhos iriam me enterrar, mas enterrei meu filho”, lembra com tristeza.

Mark foi um dos incentivadores do projeto. “Meu filho me dizia que se a gente não adotasse as crianças da comunidade alguém iria adotar. Se a gente não ocupasse o tempo ocioso delas, alguém iria ocupar”, disse.

Demorou um pouco, mas o pedido de Mark foi atendido. Ela recebeu o apoio das alunas, especialmente pelo incentivo da vizinha, Rosalia Campana. “Tinha todos os motivos do mundo pra dar errado, mas eu escolhi viver com o amor. Eu sou carregada 3G: gratidão, generosidade e gentileza”.

Gisele Alexandre é correspondente do Capão Redondo
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Gisele Alexandre

Jornalista de quebrada, educomunicadora, coordenadora de projetos, fundadora do podcast Manda Notícias e integrante da Escola Feminista Abya Yala. Mãe do Pedro Henrique, libriana, apaixonada por gatos e pelo trabalho. Correspondente do Capão Redondo desde 2018.

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