Correspondente narra como foi a madrugada no município da Grande São Paulo e como a situação do filme vencedor do Oscar se aplica às periferias do Brasil
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Por: Ana Beatriz Felicio
Crônica
Publicado em 11.02.2020 | 14:44 | Alterado em 11.02.2020 | 17:16
Correspondente narra como foi a madrugada no município da Grande São Paulo e como a situação do filme vencedor do Oscar se aplica às periferias do Brasil
Tempo de leitura: 3 min(s)No domingo (9) Parasita ganhou o Oscar de melhor filme do ano. Melhor filme do ano! Uma produção sul-coreana. Um filme que critica o capitalismo, um tapa na cara do estilo dos ricões americanos.
O filme conta a história da família Ki-taek. Desempregados e vivendo em um porão, na periferia de Seul, capital da Coreia do Sul, a vida deles muda quando passam a fazer parte da rotina de uma família rica da cidade.
Enquanto o elenco comemorava a vitória, no sul do hemisfério que recebeu a luxuosa festa, a maior cidade da América Latina era atingida por uma forte chuva.
Não dormi. Estava ainda em êxtase pelo meu filme favorito ter ganhado o maior prêmio do cinema mundial, e sofrendo das minhas ansiedades por saber que provavelmente perderia a hora do trabalho.
Na quadra ao lado da rua, meus vizinhos também não dormiram. Mas por outra coisa.
A mulher me disse que acordou com gritos em desespero chamando seu nome. Eram duas da manhã. “Meu coração gelou. Só poderia ser aquilo…”. E era. A enchente. Ela não vinha por aqueles lados há mais de 10 anos. Mas naquela noite foi avassaladora. “Quando levantei, meu quarto já estava cheio de água. Mas eu não perdi tempo não. Chamei os meninos e colocamos tudo pra cima”.
Às seis da manhã, na aurora do meu quarto, escuto minha mãe falando que não daria para ir trabalhar. O centro da cidade era uma ilha. Os trilhos do trem já não se viam.
Levantei de supetão. No ímpeto que tenho de sempre querer estar e ver as coisas saí na rua com a minha capa de chuva vermelha sem nem pentear os cabelos. O rubro combinou com a cor do barro da rua.
Moças jogavam fora fraldas da bebê de quatro meses, encharcadas, inutilizáveis para sempre. A água escorria da porta das casas. Algumas ainda estavam intransitáveis. O sofá erguido, as coisas no alto. E o semblante das pessoas de uma exaustão gigantesca.
Uma senhora chegou de chinelo assustada: “É aqui que mora meu neto?”. Ninguém conhecia o rapaz. Prédio errado, eles se parecem mesmo na Cohab.
Fui com ela em meio ao caos, em meio a água. Achamos o neto, ele estava bem. Ela me abraçou com os olhos cheios de lágrimas.
Fiquei ali tonta entre panos, rodos e álbuns de fotos destruídos, sentindo a imensidão da minha impotência.
Ao voltar para casa vi que uma ex-colega da faculdade cara na qual me formei havia postado uma foto agradecendo a segunda-feira chuvosa com o gato na cama.
Em que planeta alguém poderia celebrar um dia como aquele?
Foi impossível não associar a cena de Parasita na qual a personagem Yeon-kyo (Cho Yeo-jeong) agradece a chuva “refrescante” da noite anterior no carro onde seu motorista (Song Kang-ho) dirige sem falar nada. Sem falar que ele havia perdido tudo que tinha em uma inundação avassaladora.
Não fui a única a lembrar dessa imagem. Ela circulou bastante nas redes sociais durante o dia. Mas para mim, era como ter saído dela. E doeu.
Quão longas são as distâncias nas cidades? Em Parasita, a família Ki-taek volta andando para casa da mansão no dia da enchente. Mas estão muito distantes da mansão mesmo assim.
Não são as distâncias físicas que me doem mais, mas sim o quanto as distâncias econômicas e sociais nos apartam e nos diferem ao mesmo tempo que nos definem enquanto ser.
Nesta segunda (10) as enchentes açoitaram toda a região metropolitana e chamaram atenção até de quem não se preocupa muito com o que acontece dá ponte pra cá. Mas quantos outros tipos de “chuvas” a gente não recebe calado? Aliás, a gente aqui já não está se afogando faz tempo?
Na real, não sei. Eu não perdi nada nas enchentes e não imagino como seja. No fundo, também queria poder agradecer por ter trabalhado de casa, enquanto alguns chefes cobraram fotos dos moradores para comprovar que não poderiam mesmo chegar ao trabalho.
Mas sabe de uma coisa? Durante todo dia eu só pensava no semblante dos meus vizinhos. Pensava na personagem rica reclamando do cheiro de seu motorista.
Queria um dia contar para Bong Joon-ho, o diretor de Parasita, que eu estive muito perto. Muito perto do seu filme logo após sua vitória no Oscar. Queria sentar com ele numa mesa de boteco e perguntar se no fundo ele ainda acha, assim como eu, que existe uma perspectiva de melhora ou se o ódio e o sonho de resgate é tudo que nos resta antes de subirem os créditos.
Jornalista, curiosa, já foi apresentadora do Próxima Parada. Gosta de conhecer pessoas novas e descobrir o que as motiva a acordar todos os dias. Correspondente de Carapicuíba desde 2018.
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