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Agência de Jornalismo das periferias

Coletiva Sopro de Vida/Divulgação

Por: Mariana Lima

Notícia

Publicado em 29.06.2022 | 19:12 | Alterado em 04.07.2022 | 18:46

Tempo de leitura: 6 min(s)

A primeira gestação de Letícia Regina Lino, 28, não foi como imaginava. Aos 15 anos, o primeiro filho nasceu por meio de uma cesariana de emergência. Falhas durante o pré-natal impossibilitaram a identificação de problemas de saúde do bebê. “Nem ‘Caderneta da Gestante’ tive na época”, relembra.

No caso de Letícia, a cesária foi necessária, e a violação de seus direitos na época afastaram a ideia de uma segunda gestação. Mas a moradora da periferia do município de Embu das Artes, na Grande São Paulo, foi surpreendida com a chegada de Sophia, que está prestes a completar 10 meses.

Até o sexto mês de gestação, a insegurança era forte. E tudo mudou quando conheceu o trabalho da Coletiva Sopro de Vida, formada por parteiras da tradição do extremo sul da capital paulista.

Coletiva Sopro de Vida atende mulheres gestantes no extremo sul @ Coletiva Sopro de Vida/Divulgação

“Não fazia ideia de que existiam parteiras na cidade [de São Paulo]. Me encantei pelo trabalho delas. E com elas entendi o que era violência obstétrica, plano de parto, meus direitos. Aí coloquei na cabeça que faria um parto tradicional domiciliar”, conta.

Com o apoio da família, Letícia continuou o pré-natal com as parteiras para garantir que ela e a bebê estariam bem para o parto em casa. Ao escolher um parto tradicional, a gestante pode continuar com o acompanhamento médico e também da parteira.

No dia 7 de outubro de 2021, perto das 7h da manhã, Sophia dava os primeiros sinais de que estava chegando. Foi quando a bolsa estourou. “Elas [parteiras] me preparam para os processos fisiológicos do trabalho de parto, algo que não tive na minha primeira gestação. Passei a manhã fazendo exercícios para dilatar, ouvindo música e me alimentando. Algo impossível de imaginar viver no hospital”, declara.

Durante todo o tempo, as parteiras acompanharam o estado da mãe e os batimentos da bebê. Às 19h, Sophia nasceu e já foi direto para o colo de Letícia. “Depois de uma cesárea em que não pude escolher nada, onde não tive voz, o nascimento da Sophia me transformou. Se eu engravidasse novamente faria da mesma forma”, revela.

Parteira da tradição

Proporcionar momentos como esses às gestantes das periferias é o que motiva o trabalho de Ciléia Biaggioli, 44. Ela é parteira tradicional, fundadora da Coletiva Sopro de Vida, cofundadora do Movimento Nacional de Parteiras, é também atriz, palhaça e moradora de Parelheiros, na zona sul.

Ciléia, assim como muitas das gestantes que acompanha, se deparou com as dificuldades de ser ouvida durante a primeira gestação. “Queria ouvir música, estar nua e não ter muita luz em cima de mim. Mas tudo que eu ouvia no hospital era ‘não pode’”, relembra.

A parteira Ciléia Biaggioli em atendimento com gestante que buscou a Coletiva Sopro de Vida @Coletiva Sopro de Vida/Divulgação

E nessa gestação, ela conta que ouviu o chamado para ser parteira, ainda na década de 1990. Ciléia então seguiu pesquisando, até que em 2012, ao acompanhar o parto de uma amiga, conheceu o trabalho das parteiras da tradição.

Ser parteria, destaca Ciléia, não tem formação. É através deste chamado, sentido por muitas mulheres indígenas e da tradição, que o partejar se apresenta. Mesmo com as oficinas realizadas por coletivos e movimentos de parteiras da tradição, a pessoa pode não se sentir pronta para atuar. Esse conhecimento não é comprovado por um diploma.

“A formação não significa que essa pessoa vai partejar. É uma questão profunda. A parteria é um processo muito forte de uma conexão espiritual”, explica Ciléia.

Para receber mulheres que buscam o parto tradicional e não tem condições de fazer isso nas próprias casas, Ciléia adaptou um quarto na chácara em que vive com a família em Parelheiros.

“A parteira está ali para verificar se está tudo indo bem, a posição do bebê, os batimentos, a saúde da gestante, para acompanhar e segurar o bebê. Mas, no final, é a gestante que faz o parto”, revela.

Rodas de conversa, medicina da placenta, uso de ervas, bater tambor, tirar tarô, são algumas das ações que envolvem o parto que segue os saberes tradicionais.

Ao buscarem a Coletiva, as gestantes contribuem com um valor social, ideal ou abundante, que corresponda a realidade socioeconômica delas. Essa ajuda financeira é para manter o projeto e apoiar gestantes que não têm como contribuir.

Registrar um nascimento

Por estar próxima de comunidades indígenas e de regiões rurais, Ciléia não enfrenta dificuldades para gerar a DNV (Declaração de Nascido Vivo) no Cartório de Parelheiros.

“Quando chego lá, o pessoal já fala ‘nasceu mais um’, porque já conhecem meu trabalho. Mas tem locais que dificultam muito, que criticam as mães e ameaçam chamar o Conselho Tutelar por terem feito um parto domiciliar”, desabafa.

Para ela, o preconceito em relação à atuação de parteiras vem do não reconhecimento desse saber. “As pessoas só acham isso ‘legal’ se for pra suprir a falta da ‘medicina profissional’.”

“Mas a parteira tradicional é um resgate de um olhar ancestral”

Ciléia Biaggioli, parteira tradicional

Esse é um dos princípios que Ciléia, junto com a Coletiva, vem aprendendo com as parteiras das aldeias da Terra Indígena Tenondé Porã, localizada também no extremo sul, em Parelheiros. Através do projeto Sementeiras do Bem-Nascer, a coletiva proporciona trocas sobre esses modos tradicionais de parto.

Desde 2012, as parteiras locais vêm se movimentando para que as mulheres indígenas, quando não há problemas de saúde, tenham seus filhos na aldeia sem intervenções médicas desnecessárias, seguindo seus próprios rituais.

Ciléia em uma das aldeias da Terra Indígena Tenondé Porã durante as atividades do projeto Sementeiras do Bem-Nascer @Coletiva Sopro de Vida/Divulgação

“É uma forma de recuperar a identidade delas, porque é um conhecimento tradicional que se perdeu. Foi incrível ouvir de uma mulher indígena, após uma roda de conversa na aldeia, que ela teria seu filho ali”, conta Ciléia.

O papel da doulagem

Ainda no extremo da região sul, na Ponte Seca, no distrito de Marsilac, a enfermeira de atenção básica de saúde Luciana Rodrigues Alves, 43, encontrou espaço para unir a formação acadêmica com a doulagem (apoio físico e emocional das gestantes, antes, durante e após o nascimento do bebê).

“Muitas gestantes chegam com um pensamento de que não podem ter autonomia, que o hospital está no comando. Então eu mostro que não, que existem outros tipos de parto”, conta ela, que atua na UBS (Unidade Básica de Saúde) Dom Luciano Bergamin.

Devido às lacunas de informação, Luciana precisa começar o diálogo com questões básicas, como tirar dúvidas sobre menstruação e prevenção, para então chegar na questão da doulagem e do parto tradicional.

“Elas [as mulheres da região] estão carentes de todo tipo de informação. E se a própria família, a rede de apoio, não se envolve, fica mais difícil fazer esse trabalho”, pontua.

Luciana atende mulheres que muitas vezes não contam com fácil acesso ao transporte público, por residirem em zonas rurais, o que aumenta as dúvidas sobre como proceder ao iniciar o trabalho de parto.

“Ao chegar na maternidade elas precisam bater o pé para não serem mandadas para a casa, seja porque ainda não dilatou ou as contrações não estão fortes. É uma viagem longa, não dá para ficar indo e voltando”, argumenta.

Somente em abril de 2022 foi inaugurada a ala de maternidade no Hospital de Parelheiros. Até então, as gestantes do extremo sul tinham como indicação mais próxima o Hospital Maternidade Interlagos, que, para efeito de comparação, está a 30 km de distância da UBS em que Luciana trabalha.

Para a enfermeira, ter a base profissional da enfermagem junto com a doulagem lhe permite uma atuação única. “É nítida a diferença entre as mulheres que doulo e as que não consigo atender. Até na forma como encaram o pós-parto. Continuo acompanhando, tirando dúvidas. Isso faz com que elas se sintam menos sós.”

Na margem estão as gestantes

Sobre a solidão da gestante, Jéssica Angelin, 28, entende bem. Doula, aprendiz de parteira, e idealizado da Coletiva Território Samaúma, que acolhe grávidas periféricas, ela conta que enfrentou depressão na gestação e período de pós-parto.

“A doulagem se apresentou para mim como uma forma de entender o que tinha acontecido”, revela Jéssica, também criadora do Sarau das Minas.

A gestação dela foi de risco devido a problemas no útero. Não ter uma rede de apoio tornou todo o processo gestacional ainda mais complicado. “Descobri depois que uma doula poderia ter diminuído alguns desses impactos. A doula que atua pelo viés tradicional é uma guia para a gestante em águas profundas”, diz.

Jéssica Angelin atendendo gestante como doula @Arquivo Pessoal

Além das questões físicas e psicológicas, como mãe solo, Jéssica encontrou poucos espaços de convívio social para ela. O abandono que mães e gestantes sofrem, destaca Jéssica, é resultado de um sistema que não as vê mais como úteis para o mercado.

“O nascimento hoje é uma coisa mecânica, robotizada. É rápido porque essa mulher tem que voltar a produzir dentro do sistema capitalista. Mas quando você olha para a tradição você vê um resgate da história, um florescer junto.”

Jéssica percebe um maior interesse de mulheres periféricas por um parto tradicional em casa, mas a desinformação ainda as afasta.

“Vejo muitas mulheres que encaram isso como um tabu, mesmo quando tem uma avó ou bisavó que foi parteira”

Jéssica Angelin, doula e aprendiz de parteira

Apesar disso, ela sente que a mudança vem aparecendo, mesmo que os direitos das mulheres avancem a passos lentos. “Esse lugar de conhecimento nos foi roubado e aos poucos estamos tomando de volta”, afirma.

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Mariana Lima

Jornalista e roteirista. Coautora do livro-reportagem "A Voz Delas: a literatura periférica paulistana". Pode ser vista com frequência em bibliotecas públicas. Correspondente de Parelheiros desde 2021.

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