Nas periferias da capital, docentes da rede pública relatam dificuldades nas primeiras semanas e problemas para estudantes acessarem atividades
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Por: Lucas Veloso | Ana Beatriz Felicio | Cíntia Gomes
Notícia
Publicado em 14.05.2020 | 11:42 | Alterado em 09.03.2021 | 11:30
Nas periferias da capital, docentes da rede pública relatam dificuldades nas primeiras semanas e problemas para estudantes acessarem atividades
Tempo de leitura: 5 min(s)Professora da rede municipal no Grajaú, na zona sul de São Paulo, Silvina Costa*, 40, tem 270 alunos para quem dá aulas durante a semana. Desde o começo da pandemia, no entanto, a ideia de manter o ensino online tem sido um desafio.
“Até esta semana, somente 19 haviam acessado e entregado as atividades que eu produzi. Faltam 251 que estão longe dos conteúdos”, contou a educadora. “Várias vezes eu propus atividades, mas não rendeu por uma série de dificuldades. Qual saída temos?”, questiona.
A dificuldade de acesso é apenas um dos desafios enfrentados pelos professores desde o começo da quarentena, por causa do novo coronavírus.
Educadores ouvidos pela Agência Mural, contaram a percepção dos primeiros dias de uso das novas ferramentas, apontaram problemas com o acesso dos alunos de baixa renda, como a falta de equipamentos e de internet de qualidade. Também citaram a dificuldade na relação com os pais e medo com possíveis cortes nos próximos meses.
Silvina diz que a prefeitura criou uma cartilha com material de algumas disciplinas, como português e matemática, mas outras matérias, como inglês e educação física, não foram incluídas, o que dificulta a rotina dela.
Também na capital, a professora Neusa Maria*, 33, ensina inglês para crianças entre 6 e 7 anos. A casa dela virou a sala de aula.
“Minha função é introduzir o inglês de forma lúdica. Faço isso com desenhos e brincadeiras, mas com a distância, isso está pior”, relata a servidora.
“Meus alunos não têm impressora em casa e sofrem para me mandar foto das atividades”, afirma. “Os materiais que eles conseguem são os que as escolas distribuem, imagina o problema agora com o isolamento.”
A situação tem sido complicada também no EJA (Educação de Jovens e Adultos). O professor Jesuíno Carvalho, 58, leciona ciências da natureza no Cieja Campo Limpo desde de 2005. Há dificuldades desde a falta de crédito para acessar as atividades até a falta de tempo para realizá-las.
“A situação atual colocou o estudante no ambiente doméstico ou de trabalho onde não há condição material nem emocional para aprender”, diz.
Ele calcula que apenas 30% dos alunos têm visto o conteúdo. “A grande maioria tem WhatsApp, mas muitos só têm acesso às mensagens e não às ligações. Portanto, só temos o WhatsApp para passar as atividades”, pontua.
O educador reforça que o material físico está sendo elaborado pela SME (Secretaria Municipal de Educação) previsto para dia 20 de maio. Mas, a instituição também se mobilizou.
“Elaboramos nosso próprio material adaptando nosso currículo não para trabalhar apenas conteúdo, mas para atendermos as necessidades mais imediatas dos alunos, como a sobrevivência diante desta trágica realidade”, explica.
Outra professora do Cieja, Luciana Dias, 36, leciona sociologia e diz acreditar que é no diálogo, na troca com o grupo, que ocorre o aprendizado. A EJA tem alunos com deficiência, jovens, adultos e idosos que estão em diferentes graus de aprendizado, da alfabetização ao ciclo 2.
“A maioria do nossos educandos estão excluídos do mundo digital, do acesso à banda larga e recursos como computadores e tablets”.
Ela conta que a maioria fala em saudade, falta de concentração, falta de tempo para si e os estudos. “Temos muitos alunos que são trabalhadores dos serviços essenciais e quando pedimos para contarem da sua rotina alguns relatos sobre o medo à exposição do vírus aparecem”, relata.
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A professora destaca que a pandemia chegou nas periferias de uma forma cruel. “A escassez de alimentos e de renda agrava a situação. Então também vamos entendendo os cenários e não nos alienamos dele para definir como podemos contribuir”, conclui.
DIFICULDADE COM A TECNOLOGIA E VIZINHOS
Há quatro anos como professora de educação infantil, Maria Aparecida, 54, trabalha na periferia da zona noroeste, no bairro do Jaraguá. Ela lembra que, no começo da pandemia, foi orientada a se afastar para cuidar da saúde. Depois das férias, em torno de 20 dias, voltou às responsabilidades.
Depois de alguns dias com ensino à distância, ela diz que as maiores dificuldades foram enfrentadas devido à idade. “Já fiz vários vídeos com conteúdos, mas o negócio é dificultoso, ainda mais nesta fase de idade. Tudo ficou tão moderno, e é bem difícil acompanhar, mas estamos indo”, conta sobre as dificuldades com as gravações.
“É nessa hora que você valoriza uma cena de comercial, ou de novela, porque, olha, é muito difícil”.
Outra reclamação dela é sobre a vizinha que ‘não colabora’. Ela já ouviu brigas, som de reformas e crianças chorando. “Neste tempo eu até descobri criança que nem conhecia”, observa.
“A nossa internet é um problema. Pense em uma coisa ruim, porque ‘cai o tempo todo’ e não carrega nada. Nem todas [as crianças] acessam internet. Tem criança que não tem computador, sendo que tem aqueles que nem água em casa possuem”, aponta.
Há mais de dez anos como professor de português em escolas estaduais de Itaquera, na zona leste, e Santana, zona norte, José Reinaldo*, 47, também reclama das recentes mudanças no ensino.
Para ele, a plataforma oferecida pelo governo estadual não tem capacidade para suportar centenas de alunos nos mesmos horários. “Eles [o estado] contrataram professores para dar aula no nosso lugar e produzir conteúdo, mas os alunos reclamam que o site trava”, comenta.
“O celular trava, não dá para ver as aulas e não tem como baixar as atividades são coisas que ouvi. Eu nem sei como orientar”.
MEDO DE CORTE NOS SALÁRIOS
Também professora na rede municipal de São Paulo, Regina do Carmo*, 32, diz que, ‘além de sofrermos com todas essas mudanças, a prefeitura quer descontar salário’. Ela comenta sobre a proposta de corte no adicional noturno.
“Olha, eles querem cortar dos que trabalham à noite, mas há norma de que essas pessoas devem ficar de plantão no horário. Acho que não faz sentido, né?”.
Regina diz também sobre a possibilidade de corte no vale alimentação. “Corta o benefício, mas professor é ser humano, a gente come e bebe, além disso, a gente gasta nosso recurso em casa, como a internet, a água e a luz”.
Em contato telefônico, a assessoria de imprensa afirmou à reportagem que o pagamento do adicional noturno está suspenso em decorrência da carga horária de trabalho, ajustada por conta da pandemia para atendimento das 10h às 16h30. Sobre o auxílio alimentação, a informação é de que está mantido aos servidores.
Por outro lado, há ainda reclamação de pais de alunos que, ao ajudarem os filhos, ofendem os servidores.
Silvina relatou ter ouvido frases como “Agora que estou dando aula devia dividir o salário comigo” e “Eu sou o professor do meu filho e não me pagam por isso enquanto os professores estão de boas”.
“Esses pais acham que dar aula é só orientar aluno, mas estão bem enganados. Professor é muito mais que isso”, defende ela, que diz estar dedicada cerca de 16 horas por dia aos alunos.
*Por receio de represálias, os nomes foram alterados
Jornalista, curiosa, já foi apresentadora do Próxima Parada. Gosta de conhecer pessoas novas e descobrir o que as motiva a acordar todos os dias. Correspondente de Carapicuíba desde 2018.
Diretora institucional e cofundadora da Agência Mural, correspondente do Jardim Ângela desde 2010. Como boa escorpiana, é desconfiada, decidida e curiosa. Ama o mar, livros, dançar, ver filmes, comer doces e pipoca.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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