Jhonatan Marques é cria do bairro da zona leste de São Paulo e aponta dificuldades para quem é da periferia entrar no humor
Arquivo Pessoal
Por: Giacomo Vicenzo
Notícia
Publicado em 30.09.2020 | 22:32 | Alterado em 03.10.2020 | 12:12
Atrás dos óculos redondos está Jhonatan Marques, 25. De fala tranquila e sem pressa, o morador de Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo, viralizou nas últimas semanas nas redes sociais com um depoimento sobre realizar um sonho: se tornar roteirista de comédia.
Há dois meses, ele faz parte da produtora Porta dos Fundos. Na mensagem, o jovem falava sobre as sequências de vezes em que não conseguiu alcançar os objetivos, o que levou a desenvolver uma depressão e pensamentos suicidas.
“Minha vida toda eu sempre fui do “quase”: quase consegui começar a faculdade, quase consegui aquele trampo, quase consegui fazer aquele show”, conta. “E hoje é muito estranho eu falar “eu consegui”.
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Marques mora, estudou e se criou no bairro de Cidade Tiradentes. Aluno da rede pública, ele lembra que começou a se interessar pela comédia no final do ensino médio.
“Em 2012, conheci o Porta dos Fundos, comecei a estudar comédia, ler livro de stand up. Enquanto meus amigos liam Brás Cubas para o vestibular, eu estava lendo livro de como fazer comédia”, comenta Jhonatan.
O estudo do ensino médio foi feito na ETEC (Escola Técnica Estadual) de seu bairro e ele lembra que foi nesse período, quando era estimulado pelas professoras a fazer apresentações, que descobriu a vocação para o humor. “Cheguei até criar um canal de humor para ETEC, mas quando saí deixou de ser alimentado e foi excluído”, comenta.
SONHAR OU SOBREVIVER
No começo dos anos 2000, o trecho ‘sonhar ou sobreviver’, da faixa a ‘Vida é Desafio’ do grupo de rap Racionais Mc’s era lançado. Quase 10 anos depois, o dilema entre conseguir realizar um sonho e garantir a sobrevivência ilustra as escolhas que Marques teve de fazer.
“Corra atrás do seu sonho custe o que custar. Quem nunca ouviu isso?”, questiona. Moro eu e minha mãe. Não posso largar tudo e correr atrás do meu sonho, se eu cair no buraco, cai todo mundo comigo”, desabafa Jhonatan.
Com pai ausente, criado somente pela mãe, a renda dos primeiros trabalhos que conseguiu fazia diferença para manter o seu lar. “Com 17 anos comecei a fazer stand up, mas tive que parar. O trampo sustentava minha casa, tive que ir para o trabalho”, lembra ele que na época trabalhava na área de telemarketing.
Mais tarde, trabalhando na área de TI (Tecnologia da Informação), Marques voltou aos palcos, mas as idas e vindas do ramo dificultavam a progressão na área que tanto sonhava.
“Eu tinha que participar do microfone aberto [momento em que comediantes iniciantes podem participar] que rolava nas casas de show no centro de São Paulo. Tinha que ir depois do trabalho e trabalhar sem dormir no outro dia”, lembra ele.
Mesmo sem nem sempre receber nesses eventos, ou recebendo pouco, Jhonatan já passou noites na rua esperando que o Metrô abrisse de novo e ele voltasse cerca de 35 km de volta para casa para tomar banho e ir trabalhar. “Não podia nem dormir um pouco, pois sabia que iria perder o ponto”, lembra ele.
As noites em claro lhe garantiram prêmios em diversos eventos do circuito. Eram premiações restritas ao universo, mas que renderam a chance de abrir a eventos maiores de stand up.
“O quase é muito presente para a gente, principalmente quando você é alguém preto e de periferia. Você quase conseguiu aquele emprego, se não fosse pelos 30 quilômetros de distância. O ‘quase’ é muito real na vida de todo mundo aqui”,
Com o tempo, Marques começou a fazer algumas apresentações em bares de bairros próximos de casa, nesses começou a ganhar algum dinheiro, mas que não era nem de perto o suficiente para que pudesse deixar o trabalho.
Com idas e voltas do stand up, Jhonatan estava longe de consolidar uma carreira na comédia. “Estava me contentando que era esse o meu trabalho, minha vida. Trabalhava numa empresa, bem ruim, eu odeio informática. Fazia porque tinha que sobreviver”, lembra. O período marcou uma fase em que ele adquiriu depressão e síndrome do pânico.
Ainda trabalhando na área de suporte técnico, ele começou a escrever roteiros de forma freelancer para o canal. Precisava de um tempo livre e de um computador em que pudesse ficar longe da chefia para poder escrever as palavras que se tornaram o primeiro roteiro aprovado rodando em um vídeo na internet.
“Estava no trabalho, quando recebi o e-mail que o roteiro tinha sido aprovado e mandaram uma prévia para mim. Corri no banheiro com o celular e desabei no choro”, lembra Marques.
No começo deste ano, Jhonatan foi demitido. As preocupações com as contas vieram, mas ele continuava escrevendo para o canal Parafernalha e também podia contar com o seguro desemprego. “Comecei a fazer vídeos para o Instagram. Mais uma vez o Yuri Marçal ajudou a divulgar em uma campanha para promover humoristas negros”, lembra ele.
A campanha chamou a atenção do canal Porta dos Fundos e ele começou a enviar alguns roteiros como freelance. “Depois de um mês, eles me convidaram para ser fixo na produtora”.
Marques revela que é a primeira vez que acorda às segundas-feiras disposto e animado com o trabalho.
A rotina passou das telas de computadores que acumulavam chamadas de suporte técnico para os roteiros que desenvolve de casa neste período de pandemia de Covid-19. “Para mim ainda parece que é um sonho. Demorei a falar isso para as pessoas, porque eu custava acreditar que finalmente eu cheguei em algum lugar. É uma sensação de alívio, sabe?”, revela.
“A gente é construído para se sentir um pouco mais abaixo do que a gente realmente é. Somos colocados para baixo todo dia e isso faz a gente murchar cada vez mais. Mas temos que lutar contra isso de alguma forma”, comenta.
Nos roteiros, diz que trabalha com foco no dia a dia e na vida de pessoas que não tem o avião como ambiente comum. Quer contribuir com a representatividade.
“A melhor ferramenta do humor é apontar quem precisa ser apontado como alvo, que é quem está oprimindo. Nesse sentido, usar o humor como uma arma é mais benéfico e nunca tirar sarro de quem já está sendo perseguido pela sociedade”, comenta.
Jornalista. Acredita no jornalismo como ferramenta de transformação social. Iniciou sua carreira profissional no Datafolha, já publicou no UOL TAB e Revista Galileu. Gosta de contar e ouvir boas histórias. Adora seus gatos de estimação e não consegue viver sem senso de humor. Correspondente da Cidade Tiradentes desde 2018.
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