Por: Redação
Publicado em 11.04.2019 | 21:33 | Alterado em 11.04.2019 | 21:33
Brenda Torres e Sabrina Nascimento,
Publicado originalmente no livro “Identidade e Força Ancestral: histórias de mulheres dentro da periferia de São Paulo“. O texto foi republicado por todos os veículos da Rede de Jornalistas das Periferias, em homenagem a Tula que morreu nesta quinta-feira (11)
Tem uma música do Criolo que fala que cada coração é um universo e ainda tem que bombear o sangue. Quem nos ensinou com sua experiência o que a canção traz em essência foi Tula Pilar, a primeira mulher que pensamos em chamar para registrar um pedaço de sua história com a gente. E o mais louco da individualidade da Tula é que ela se mistura em infinitas possibilidades de histórias de outras mulheres.
Sua jornada se assemelha, e muito, com a de Carolina Maria de Jesus, uma de suas maiores referências. Assim como a de tantas outras mulheres brasileiras que permanecem lutando, diariamente, contra opressões e impedimentos que são justificados com base em uma estrutura racista e misógina. Inclusive observamos que quando fala em Carolina, talvez, Tula esteja falando de si mesma.
Negra com traços fortes, normalmente usando roupas que destacam sua pele e seu sorriso largo, ela não espera por perguntas e se solta para se apresentar sem eira nem beira, sempre com o astral lá em cima.
Sua história tem início em Minas Gerais. Sua mãe, Dona Antônia, era cozinheira, lavadeira e diarista conhecida em Belo Horizonte. Mãe solo de sete meninas, morava na favela Alto do Minério e como a casa da patroa era longe, Tula e as irmãs passaram a viver na casa onde a mãe trabalhava para não ficarem sozinhas.
As meninas nunca gostaram de ficar na casa das patroas, pois eram obrigadas a trabalhar e apanhavam sempre. Tula se lembra, inclusive, que um dia uma patroa cortou uma parte de seu cabelo, que até hoje não nasce normal. Ela e as irmãs estudaram na mesma escola dos filhos da patroa de sua mãe, mas um dia foram proibidas de continuar estudando: “Tudo estava indo bem até que as negrinhas começaram a se sair melhor que os filhos da patroa. Não era aceitável que as filhas da empregada tirassem notas mais altas”.
Depois de um tempo, a mãe se mudou para o bairro São Benedito, perto do Jockey Club de Belo Horizonte, um local melhor, mas ainda muito longe de onde trabalhava. Nessa época as filhas já estavam maiores e não queriam continuar vivendo daquele jeito, então elas começaram a fugir uma vez ou outra para a casa escondidas da mãe. Tula lembra que nesse tempo elas eram felizes. Foi nesse período que as meninas começaram a trabalhar para ajudar a mãe em casa. No entanto, nas vezes em que não tinham serviço, continuavam a fugir para brincar e aproveitar. “Enquanto minha mãe não arrumava emprego pra gente, era só brincadeira! A gente subia nas árvores, nadava na lagoa do Jockey Club, ficava na rua. Minha mãe ficava louca, coitada, e nos chamava de fujonas”.
Tula comenta que a mãe morreu cedo por conta de um problema no coração e pressão alta. Além disso, ela enfrentava depressão por não conseguir trabalhar mais e ser dispensada de seus serviços. “Ajudei muito minha mãe durante a adolescência, eu trabalhava com ela nas cozinhas, então eu tive uma relação muito grande com ela. Eu fui uma das filhas que mais a ajudou”.
Tula nunca soube quem foi seu pai. Sempre desconfiou que fosse um homem com quem a mãe foi casada durante um tempo, o mesmo que consta em seus documentos como pai, mas nada nunca foi afirmado. “Minha mãe era que nem eu, badalada e teve um filho com cada homem porque achava que eles iam a ajudar. Como eu também que tenho três filhos de pais diferentes. Eu achava que os caras iam me ajudar, mas quando eles veem a gente com a barriga a primeira coisa é dar o pé no nosso traseiro”.
A única coisa que sabe sobre o pai é que ele parecia com o Milton Nascimento jovem. A mãe falava apenas isso. E, por conta disso, Tula fala que o cantor é uma das suas paixões. Apesar da curiosidade, ela afirma que a presença paterna não fez tanta falta. E realmente parece não se importar.
“Sinto falta mesmo é de não ter tido uma convivência com meus avós, queria ter o conhecido. Só sei das histórias que a minha mãe contava, que eles vieram para cá como escravos e quando a escravidão acabou a minha avó tinha 12 anos de idade. Eu gostava tanto dessas histórias que eu coloco isso nas minhas poesias”.
Lembra ainda que desde pequena gostou de escrever e que na casa das patroas pegava os livros das estantes e se inspirava para escrever suas próprias palavras. “Um dia, quando eu era pequena, escrevi um poema. A patroa me viu com o papel, pegou para ler e perguntou se eu estava louca por ler e escrever ao invés de trabalhar e onde eu tinha aprendido a escrever. Eu falei que tinha gostado do que tinha lido no livro e tinha me inspirado. Aí ela olhou de novo, rasgou o papel e jogou no tapete, falando que era para eu limpar, que eu estava na casa dela para trabalhar e que se ela me pegasse escrevendo, eu ia ver. Nisso ela puxou meu cabelo e me deu um beliscão”.
Com cerca de 14 anos Tula foi para o Rio de Janeiro, onde a mãe nasceu, junto com a família que trabalhava. Lá teve sua primeira profissão como babá, arrumadeira, copeira, um misto de tudo. Como nunca foi de levar desaforo, Tula nunca ficou por muito tempo em nenhuma casa, o que também a deixou com fama de barraqueira em todas as agências que havia se cadastrado, dificultando sua busca por novos lugares para trabalhar. Quando voltaram para BH, Tula percebeu que queria seguir seu caminho.
“Queria ir para outros mundos. Eu era adolescente, muito marruda, tinha sonhos e muitos desejos e lá eu sabia que não ia conseguir nada. Aí surgiu a oportunidade de vir para São Paulo, trabalhar como empregada doméstica. Trouxe minha mãe e mais três irmãs, mas só eu e minha irmã mais velha ficamos aqui. Minha mãe não gostou, achava as patroas daqui esquisitas e acabou voltando para Minas Gerais”.
Em São Paulo se virou nos 30, cresceu, amadureceu, teve duas filhas e um filho. Quando percebeu que não dava mais para continuar trabalhando na casa dos outros, foi vender convênio de saúde e assinatura de jornal na rua. Passou por uma época difícil, chegando a catar papelão para poder comprar fralda para o filho. Enfatiza que, apesar de muitas pessoas especularem, nunca foi moradora de rua, mas já trabalhou como Agente Comunitário de Saúde (ACS) com a população em situação de rua.
Tula nunca parou de escrever. Sempre muito despojada, nunca teve problemas em se relacionar e conhecer pessoas. Com uma libido aflorada, sempre gostou de contar suas histórias e experiências sexuais em seus poemas, mesmo que sem mostrar para ninguém. Até que um dia o Binho, do Sarau do Binho, começou a desenvolver alguns Saraus Eróticos num bar perto do Terminal Campo Limpo. Ela acompanhou todos os que aconteceram e num dia resolveu ler um poema seu que fez o maior sucesso.
“Sempre escrevi com base em aventuras que eu vivia com os caras que eu ficava e depois desse dia que eu recitei, passei a ter mais inspiração para escrever. Comecei a gostar e ver que as pessoas gostavam também, foi um incentivo. Eu fiz uma poesia, quando eu ainda participava da Cooperifa, chamada ´Formas Feminis que é muito sensual e, então, eu comecei a ser tachada como “aquela que fala aquelas coisas”. Isso foi há uns doze anos, eu era tida com uma aberração. Mas, algumas mulheres começaram a se inspirar em mim e a querer falar também e foi surgindo uma onda de mulheres poetas mais ousadas. Foi através do Binho que tudo começou porque eu já escrevia poesia erótica, mas tinha vergonha de falar”.
Hoje Tula mora em Taboão da Serra, é vendedora da revista Ocas há mais de dez anos e artista periférica independente. Escreve poesias eróticas, participa de saraus na periferia de São Paulo e criou seu próprio coletivo, o RAIZARTE, formado por ela, pelo filho de 22 anos e pela filha mais nova, de 14. É inspiração e influência para seus filhos, que se envolveram com arte e poesia desde cedo. Fala que, antes, o filho não gostava muito, mas com tempo foi se envolvendo e hoje recita e toca em grupos de culturas populares como Jongo, Coco e Tambor de Crioula. A filha mais nova cresceu em meio aos saraus e não consegue ficar quieta. Na escola, recita poemas sobre racismo, preconceito e até estupro. A professora, inclusive, já chamou Tula para conversar, mas a mãe afirma orgulhosa que a menina quer falar e não tem jeito. A mais velha nunca se sentiu muito adepta de movimentos culturais e seguiu sua vida como trançadeira e cabeleireira.
Com esperança e uma certa dor, afirma que é muito difícil ser artista sem faculdade e que seria mais fácil para ela criar peças de teatro e fazer pesquisas de campo sobre a cultura africana, um de seus sonhos, se ela tivesse alguma formação acadêmica ou bolsa em alguma universidade.
Tula tem um denso interesse pelo conhecimento e resgate da cultura africana. Ressalta que precisamos ler mais sobre nossos ancestrais, que muito da nossa história está sendo apagada ou repassada de forma errônea, o que ajuda a fortalecer um sistema de desigualdade e alienação. Com mil e uma utilidades, faz aula de dança africana, apresentações teatrais representando Carolina Maria de Jesus e dá aulas de danças africanas em alguns espaços culturais, escolas e CEU’s. Além disso, faz aula de canto e violão.
Também já teve aulas de tango que gostaria de continuar, porém, é caro e ela não tem dinheiro para isso. Já fez dança do ventre com uma “madame chata” como professora e lembra de uma apresentação onde ela era a única negra, o que causou estranheza no público. “Mulher negra pode apresentar e fazer dança do ventre sim”.
Num dia, Tula nos chamou para ir ao “Fecha Nunca”, um boteco de esquina no Campo Limpo. Parece que todo bairro tem um bar com esse mesmo nome, né? Chegamos lá e era o mesmo local em que almoçamos em 2015 quando fazíamos a cobertura da Felizs (Feira Literária da Zona Sul). Tula procurou um lugar no canto onde não tinha tanto barulho, pediu uma cerveja e avisou que tinha pouco dinheiro. Sem saber que também bebemos, ficou com a cerveja para ela e, intrigadas com sua história, preferimos nos atentar ao que ela nos contava. Ali ela pareceu se sentir mais à vontade. Disse que costuma frequentar o bar com amigas e amigos e normalmente ali é o lugar para saber das fofocas.
Tula sempre gostou de ter relacionamentos afetivos e se mostra uma mulher apaixonada que se envolve rápido. Relembra suas paixões e ficadas casuais com um sorriso de menina. Inclusive, em uma viagem à Buenos Aires, para a Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, se divertiu com um argentino. Nessa viagem reencontrou uma das irmãs que mora por lá e que não via há muito tempo. Conta que a relação entre elas nunca foi muito boa e que a irmã caçoou dela quando disse que era poeta e artista. “Quando nos vimos, minha irmã chorou, mas eu não chorei não. Ela era bem ruim comigo quando a gente era jovem e eu não acredito nela”.
Tula comenta que uma de suas vontades é escrever um livro sobre a vida de sua mãe. Acha importante registrar essas histórias, mas diz que é difícil ter apoio, dinheiro e tempo para tantos projetos. Sobre feminismo, Tula teve seu primeiro contato com o movimento quando Marisa Dandara – mulher negra, periférica e feminista do Campo Limpo, grande referência para muitas mulheres da região – a levou para algumas reuniões da Marcha da Mulher. Depois disso, ela começou a participar dos encontros, a marchar e viajar com o grupo. Essa foi a porta de entrada para que Tula também passasse a participar da Marcha das Mulheres Negras. Em 2015 participou da marcha em apoio à Dilma Rousseff, em Brasília, que reuniu cerca de 50 mil mulheres no período de votação do impeachment.
Apesar de todo o envolvimento e crescimento junto ao ativismo, Tula fala que nos últimos tempos tem se decepcionado muito com questões políticas e sociais de forma geral e, por isso, se afastou um pouco. “Já participei bastante, mas agora participo meio em paralelo porque estou muito corrida com meus trabalhos e muito decepcionada com alguns retrocessos. Mas a gente tem que estar pronta para lutar todos os dias se não a gente não vence”.
A poetisa pega suas lutas e vivências e transpassa para seu trabalho que fala com orgulho e entusiasmo. Como mulher negra, afirma que, tem o dever de continuar de pé com sua arte, a fim de, mostrar e disseminar sua cultura.
“Sinto que tenho a obrigação de trazer meus ancestrais, minhas raízes, nossa cultura afro-brasileira e nossos orixás. Eu não sou religiosa, mas temos que falar dessa cultura linda. Já que falam dos deuses gregos, por que não falar dos orixás, que são deuses também? Deuses africanos”.
Nos últimos tempos tem pego bastante trabalho e participado de vários projetos. Mas não reclama, fala que é bom porque recebe uma graninha e consegue exercer o que ela tanto gosta que é a sua arte. “Com meu trabalho eu pretendo mudar o mundo. A Alice Ruiz, numa apresentação que eu participei na Bienal do Livro, disse que passo muita força e verdade no que faço. Eu achei muito legal isso que ela falou porque essa verdade com que escrevo vem da minha história e da minha infância que são muito importantes para mim. Gostaria que minha mãe tivesse aqui para poder me contar e me inspirar mais. Sempre tento estar ligada na minha base familiar, minhas origens, ancestralidade e com o feminismo. A gente luta para que outras mulheres vejam que é possível, que temos que levantar e ir adiante”.
Tula é representação para mulheres, negras, periféricas, empregadas domésticas, artistas, poetas, mães solos, existentes e resistentes. Tula vive e deixa viver de forma bonita e esperançosa. Encara os trilhos e se fortalece diariamente da relação com seus filhos e do que construiu até então.
Em seus poemas entoa, que: a caneta é seu troféu, que quer bordar as palavras no papel e tudo o que quiser dizer. Porque é hora de rufar os tambores e ouvir os rumores: poder e voz para as mulheres negras. Tula é poesia, uma garota ousada e seus pés a levam para onde quer ir, para onde possa sonhar.
Não destoando das outras histórias que estão por vir, as vivências que aqui transcorremos se encontram, se misturam e se embalam numa dança de fortaleza, a fim de fixar raízes ancestrais para se refazer a cultura e repensar o estar em sociedade, buscando um não-pertencimento que permita a vinda de uma nova perspectiva e um alçar de novos sonhos.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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