Por: Pietra Alcântara
Opinião
Publicado em 21.06.2022 | 14:48 | Alterado em 22.06.2022 | 15:52
Fim de domingo, recebo uma mensagem pelo Instagram de um amigo jornalista que também integra a Agência Mural. Era um comentário bem mal-educado feito por uma cliente de um restaurante sobre o bairro que cresci, a Vila Medeiros.
O post me fez rir. Depois me fez sentir raiva. E, depois, me fez refletir. Me lembro até hoje como foi mudar para a Vila Medeiros, bairro que fica na zona norte de São Paulo, quase em Guarulhos. Foi em junho de 2004 e eu tinha 7 anos, quando deixamos o bairro Lauzane Paulista, também na zona norte.
A “casa nova”, como eu e minha irmã chamávamos o novo lar, que na realidade era um apartamento, era o sonho dos meus pais se tornando realidade: dizer adeus ao aluguel e começar a vida em família em um bairro diferente.
Esse novo bairro tinha muitas ladeiras, nossa! Lembro de subir a avenida Nossa Senhora do Loreto devagar todos os dias para ir à escola e depois correr na volta, esperando meu pai para pular os degraus da calçada junto comigo.
Um fato interessante sobre as ladeiras é que, dependendo da parte do bairro que você está, dá para ver uma boa parte da cidade de longe. Tipo estar num andar alto de um prédio, mas sem tirar o pé do térreo.
Assim que mudamos, ouvimos falar de um restaurante que estava começando a ficar famoso: o Mocotó. Naquele ambiente, cheio de coisas penduradas na parede e homenzinhos de amarelo servindo comidas gostosas, aprendi o nome de um prato que seria meu favorito até a vida adulta: o escondidinho (que na época custava cerca de R$ 35, segundo a memória da minha mãe).
Cresci enquanto o restaurante Mocotó ficava cada vez mais famoso, se tornando o principal ponto de referência de onde eu morava. Chamar a Vila Medeiros de “bairro do Mocotó” fazia as pessoas imediatamente saberem do que estávamos falando. Mas claro que para nós, moradores da região, o Mocotó era a ponta do iceberg de histórias legais e curiosas que o bairro têm para oferecer.
Quem não conhece o Pastel da Sueli, com meio metro de comprimento e filas recorrentes na frente do estabelecimento, não viveu o melhor que a Vila Medeiros pode oferecer em salgados gigantes – que não se resumem ao pastel.
Ou a lenda da igreja Nossa Senhora do Loreto, que foi construída em formato de avião não só por ser a padroeira dos aviadores, mas como forma de agradecimento após um fazendeiro ter sobrevivido de um acidente de avião naquele local, quando tudo ainda era mato.
Outra figura que poucos conhecem é Seu Josa, o primeiro funcionário do restaurante Mocotó (quando ainda era uma casa de iguarias), que sempre estava na porta do local quando eu passava para ir à escola. “Bom dia Seu Josa”, na ida e “boa tarde seu Josa”, na volta.
Quando já cursava jornalismo na faculdade, decidi entrevistá-lo para a matéria de “Introdução ao Jornalismo”. Me contou as histórias mais doidas sobre o início do restaurante e de sua vida em São Paulo. Quando mostrei o rascunho do texto para o professor, ele achou que o personagem era “muito simples” e me pediu para trocar. Fiquei decepcionada, mas fui em busca de alguém que ainda fosse da Vila Medeiros.
Foi quando lembrei do George Arias, um lutador de boxe peso-pesado que desafiou o Maguila ao vivo no programa do Ratinho nos anos 1990. Era morador do bairro e conhecido pelos vizinhos, inclusive dando palestras nas escolas sobre a importância do esporte – foi assim que o conheci.
Falei com ele pelo Facebook e ele foi super receptivo: me recebeu em sua casa e virou meu personagem para o trabalho da faculdade. Anos mais tarde, contei a história da esposa dele em reportagem publicada no blog Mural, em parceria com a Folha, como a primeira mulher treinadora de um lutador peso-pesado no Brasil.
Tirei 10 com a história do boxeador, mas comemorei a nota com Seu Josa. Explico: todo dia eu passava na frente do restaurante e ele me perguntava sobre o trabalho da faculdade. Não tive coragem de contar que tinha sido barrado, então omiti essa parte. Quando recebi a nota, cheguei no Mocotó de manhã e gritei “Seu Josa, tirei nota máxima!”. Ele deu um berro, largou a vassoura e foi me dar um abraço. E todo mundo ficou feliz.
Lembrei de todas essas histórias ao ler o comentário da Sandra, postado no Instagram do Rodrigo Mocotó, chef responsável pelo restaurante e filho do fundador, Manoel.
Que os próximos visitantes da Vila Medeiros e do Mocotó tenham um olhar mais cuidadoso e sem preconceitos sobre o distrito que abriga mais de 128 mil pessoas e vai muito além de uma “paisagem feia” com um restaurante famoso.
Jornalista, social media. Formada em Jornalismo e pós graduada em Styling e Direção de Arte. Amante de brechós e moda 0800. Gosta de gravar stories loucos e assistir vídeos no YouTube. Correspondente da Vila Medeiros desde 2019.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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