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'Quanto tempo nos roubam no vai e vem da cidade?'

Correspondente Daniel Santana reflete sobre as horas perdidas em filas e ônibus lotados por trabalhadores das periferias de São Paulo

Daniel Santana/Agência Mural

Por: Daniel Santana

Crônica

Publicado em 07.07.2025 | 8:07 | Alterado em 06.07.2025 | 19:09

Tempo de leitura: 3 min(s)

Em um dos meus retornos diários do trabalho, esperei 40 minutos na fila por um ônibus no Terminal João Dias, na zona sul de São Paulo. A demora do transporte já é uma história antiga, que inclusive tive a chance de contar aqui na Mural no ano passado.

Cansado e estressado dessa rotina, me peguei a filosofar: quão humilhante é o serviço oferecido pelo transporte público na rotina do trabalhador periférico? E quanto tempo perdemos, diariamente, apenas dentro de um ônibus ou trem?

Segundo dados da Rede Nossa São Paulo, passageiros, como eu, sofrem em média 2h47 por dia dentro do transporte coletivo. Quase 14 horas por semana entregues ao deslocamento, se esvaindo entre esperas e baldeações. Esse mesmo estudo aponta que a frequência dos ônibus (27%) é a principal reclamação da maioria da população que embarca diariamente, seguida da lotação (24%) e da pontualidade (16%).

Passageiros perdem diariamente seu precioso tempo nas filas do Terminal João Dias @Daniel Santana/Agência Mural

A filosofia da espera me levou ainda ao conceito de tempo apresentado na mitologia grega, que o divide em duas visões, dois senhores que transitam entre o fardo e a leveza: Chronos e Kairós.

Chronos, o velho de barba branca, impiedoso, que conta os minutos, pesa os segundos, devora as horas. Kairós, jovem, leve, aquele que chega no instante certo, no sopro da oportunidade, no abraço do agora que faz sentido.

Mas na São Paulo das periferias, com suas gigantes “pólis” espalhadas nos extremos da cidade, lugares de gente que resiste e sonha, quem reina é Chronos, voraz e insaciável.

Numa simples metáfora, podemos dizer que ele habita as plataformas frias, no constante girar das catracas, nas filas que dobram esquinas, nos pontos onde nunca se sabe se o ônibus virá ou se haverá espaço para mais alguém.

Esse tempo devorador também mora nos sentimentos de quem precisa embarcar nesse ir e vir, mesmo carregando angústias e revoltas pelas diversas oportunidades perdidas.

Cada corpo apertado nos ônibus lotados carrega também horas de espera, sono atrasado e sonhos resistindo @Daniel Santana/Agência Mural

O trabalhador acorda quando a cidade ainda dorme e volta quando ela já se deita outra vez. Em busca de uma vida mais digna, torna-se quase um morador fixo de vagões que mais parecem pulmões sem ar, apertado entre desconhecidos, cada um perdido no próprio cansaço.

Ideias para mudar essa situação? Existem! Várias. Afinal, o poder público tem planos para a melhoria da mobilidade urbana, como, por exemplo, a ampliação e qualificação do sistema de transporte para diminuir o tempo de deslocamentos cotidianos.Mas esse e outros planos ainda estão somente no papel, enquanto o tempo passa…

Ou seja, o tempo virou fumaça de escapamento, janela embaçada, relógio que corre cada vez mais cruel para quem precisa. Enquanto os ponteiros correm, impiedosos, o preço da passagem pesa, o corpo dói e a mente se enche de silêncios que gritam. O corpo cansa. A mente adoece. Estamos vivendo mesmo ou apenas deixando de viver?

Tic-tac. Esse tempo não é apenas perdido, é roubado. Roubam-se manhãs, tardes, noites. Roubam-se o descanso, cafés da manhã com os filhos, conversas com quem amamos, cochilos depois do almoço, risadas gratuitas

Num sistema injusto, o tempo Kairós, o dos bons momentos, é empurrado até para fora das vielas e becos. Na quebrada, ele é uma visita rara, um luxo, um respiro, uma exceção. O cotidiano nos prende a uma rotina de sobrevivência.

Será que estamos nos tornando escravos da hora, movidos pela constante pressa pra tudo? Será que somos tão indignos assim de desfrutar daquilo que lutamos tanto para construir?

O inquieto ponteiro gira, sem perdoar nada. Chronos mastiga mais um pedaço de vida entre uma porta que se fecha, um trem que quebra, um ônibus que atrasa, uma conexão que não se faz. Insensível e cruel destino daqueles que têm de lutar mais e mais a cada dia.

No atual mundo, em que tudo acontece em velocidades dobradas, triplicadas, em que até sentir se exige pressa, o desembarque dessa rotina insana se faz urgente. O bem-viver não pode ser um ato adiado. Porque merecemos mais do que sobreviver entre catracas, buzinas e relógios apressados.

E o cidadão periférico segue. Persiste, mesmo exausto, como quem desafia um tempo que não foi feito para ele.Apesar de tudo, também somos donos do agora. E nem mesmo Chronos, nem um Estado ausente, pode nos arrancar a esperança de um tempo em que viver não seja apenas sobreviver ao caos que nos impõem.

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Daniel Santana

Jornalista, apaixonado por livros, samba e carnaval. Corintiano, vivo o futebol de domingo a domingo. Adoro contar histórias através do jornalismo.

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