Josélia Florentina/Arquivo Pessoal
Por: Luis Antonio Souza | Raphaela Guimarães
Notícia
Publicado em 15.07.2025 | 11:50 | Alterado em 15.07.2025 | 19:56
Cerca de 3 mil famílias de quatro comunidades (Favela da Tia, Leonard, Milênio e Souza Ramos) em Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo, estão sob a ameaça de perder casas, comércios e organizações. A reintegração de posse estava marcada para esta terça-feira (15).
Desde o início de maio, agentes da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), empresa do governo paulista, notificaram a população sobre a necessidade de desocupação para a construção de um novo conjunto habitacional.
“A CDHU apareceu do nada ali na comunidade dizendo que precisavam fazer um cadastramento. Depois colocaram as placas de identificação. Eu chamo isso de ‘marca da besta na casa do povo’”, critica Hamilton Clemente Alves, 55, assessor parlamentar, advogado e representante das famílias.
A empresa propõe aos moradores um financiamento por 30 anos no qual as mensalidades correspondem a 20% da renda familiar, além de um auxílio-moradia de R$ 800 por um período de 12 meses.
No entanto, o atendimento habitacional não contempla comércios, associações ou igrejas, que não terão direito a indenização ou reassentamento por parte da Prefeitura ou do Estado.

Fininho e Josélia temem perder casa e mercadinho com remoção da CDHU @Raphaela Guimarães/Agência Mural
Há quase meio século, o líder comunitário e comerciante André da Paz da Silva, o Fininho, 46, cresceu na antiga ocupação Santa Rita. Hoje, neste local está a comunidade do Machado, uma das áreas particulares da região.
Ele comprou uma casa na Favela da Tia há 26 anos, mesmo tempo em que se casou com Josélia Florentina, 47. “Tudo o que sobrava, quando pagava nossas contas ou quando fazíamos nossas compras, era investimento na nossa casa. Foi nossa vida inteira naquela casa”, explica Josélia.
O casal abriu um mercadinho em março deste ano. “Quando saí da empresa, que trabalhei há 12 anos, nós juntamos e compramos esse pedacinho para trabalharmos aqui”, diz a comerciante.
Agora eles enfrentam o risco de ver tudo o que conquistaram ser demolido e perder a única fonte de renda.
‘Estão colocando aí nas redes sociais que nós somos invasores, mas nós não somos. Nós somos moradores’
Fininho, morador de Cidade Tiradentes
A realidade enfrentada pelo casal se repete em outras casas da comunidade. A aposentada Maria Terezinha, 66, e Adelmo de Moura, 57, prestador de serviços da Sabesp, vivem na Favela da Tia há 50 anos e dizem que perderam o sono desde que foram informados sobre a possível remoção.
Eles têm buscado um espaço para tentar levar os móveis. “Não sei como vai ser isso. Se vão chegar espancando as pessoas, batendo, jogando bala de borracha, dando tiro. Ela é idosa e não estamos aqui para isso”, desabafa Adelmo.
“A única coisa que eu tenho é meus braços para trabalhar, para conseguir as coisas, para ir batalhando, trabalhando de novo”, completou.
Para os habitantes da Favela da Tia, a proposta da CDHU não atende as expectativas. Eles não negam de sair desde que a estatal faça a realocação equivalente, conhecida popularmente como “chave por chave”, além da indenização para os comerciantes locais.
“A luta não é só por nós. É por todas as famílias que estão aqui. Nós não somos invasores. Somos uma comunidade viva, que resistiu e construiu tudo com esforço”, ressalta Fininho.

Córrego que passa por comunidades da região @Raphaela Guimarães/Agência Mural
Um levantamento exclusivo da Agência Mural com 129 moradores das quatro comunidades revelou um cenário de desinformação e rejeição à proposta atual.
Cerca de 88,1% afirmaram não ter condições de arcar com o financiamento proposto. Apenas 11,9% disseram que conseguem assumir as parcelas.
Metade dos moradores (49,2%) disseram que não foram oficialmente informados sobre o projeto. Outros 22,6% souberam apenas por vizinhos ou redes sociais.
Quando questionados sobre as alternativas mais justas, 54,4% preferem permanecer no local pagando IPTU e 52,8% optam por um apartamento quitado no modelo “chave por chave”. Nenhum dos entrevistados indicou o financiamento como solução viável.
Na Comunidade Souza Ramos, outro local que será impactado caso o projeto se concretize, Aleksandro Saturnino, 49, vive há 16 anos. Fundador da igreja Betel Éden e um dos líderes da Associação Souza Ramos, ele critica a remoção de cerca de 720 famílias do local, todas elas com contrato de compra e venda, além de contas de luz e água.
“Se eram lotes irregulares, por que antes da gente construir o que construímos, eles não pararam, não mandaram igual agora uma formalização que era terreno irregular?”, questiona o pastor.

Reunião com lideranças da comunidade Souza Ramos @Arquivo Pessoal
A principal crítica dos moradores e do líder religioso está relacionada à condução do processo. Segundo eles, o órgão estadual vem tentando negociar individualmente com os residentes, o que seria uma forma de enfraquecer a resistência coletiva.
“Eles querem fazer uma ditadura com a gente. Não querem deixar que falemos e lutemos com aquilo que nós podemos”, denuncia Aleksandro.
Para muitas famílias, o custo de deixar o local vai além do valor financeiro. O risco de perder acesso a escolas, transporte, redes de apoio e trabalho informal gera preocupação. A proposta de financiamento habitacional, segundo os moradores, não leva em consideração a realidade socioeconômica da região.
“Aqui há famílias, há história, há criança. Se você viu o tanto de criança nessa rua, onde vão colocar tudo isso de criança? O que a gente vai fazer num ‘apertamento’ com criança, com nossos animais? Eles não aceitam”, reclama Ivonete Gonçalves, 49, moradora há 26 anos, além de dividir com o pastor a liderança da associação.
Moradora há quase 21 anos, Edneide da Costa, 42, afirma que vive um pesadelo. Com a ameaça de perder a casa, se sente invisibilizada por parte do governo. “Eu sou gente, sabe? Nós não somos fantasmas. Não é justo eles chegarem aqui e dizer para mim: ‘senhora, você vai sair daqui’”, desabafa com os olhos lacrimejados.

Moradores em audiência na Assembleia Legislativa @Raphaela Guimarães/Agência Mural
Na visão do pastor, o governo deveria priorizar quem está sem moradia em vez de remover quem já construiu a própria casa. “Por que não dar essas unidades para quem está na rua? Por que tirar de quem já tem moradia, que já construiu com sacrifício?”, argumenta.
Ele também critica a dificuldade de acesso aos programas habitacionais para pessoas com restrições no nome. “Quem está aqui talvez não consiga financiar um apartamento. E aí, como fica?”, questiona.
As lideranças da comunidade Souza Ramos afirmam buscar apoio de assessorias jurídicas e de vereadores para impedir as remoções, pois a comunidade luta pela urbanização do território.
Em uma reunião na sede da CDHU, realizada em 11 de junho, uma técnica repreendeu a fala do advogado que representava as famílias sobre a proposta de financiamento por 30 anos e o auxílio-moradia de R$ 800.
“Tem casa para morar dignamente, em unidade nova, zero. E vocês vão pagar o financiamento porque vocês são capazes.” Na sequência, uma moradora a questiona: “E se não tiver como pagar?” E ela conclui: “Todo mundo trabalha, todos têm o mesmo direito.”
O discurso motivador revela um fator complicador. A política de reassentamento da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) tornou-se mais um produto imobiliário do que uma política de moradia. É o que aponta Débora Ungaretti, pesquisadora do LabCidade, da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), em entrevista à Agência Mural.
“As pessoas que não têm renda trabalham ou estão correndo atrás de emprego. Tem mães que às vezes têm renda, outras vezes, não. Porém, trabalham em empregos superprecarizados. Grande parte das pessoas é excluída do atendimento”, destaca a pesquisadora.
‘O atendimento habitacional é feito como produto imobiliário e não como uma política de moradia’
Débora Ungaretti, pesquisadora da LabCidade (FAU-USP)

Moradores vivem há décadas no local @Raphaela Guimarães/Agência Mural
A pesquisadora também cita o caso da Favela do Moinho, no centro da capital, onde famílias relataram ter sido pressionadas a declarar falsamente a renda para se enquadrar no financiamento ou no auxílio-aluguel — o que pode levar à insegurança habitacional.
“É mais simples fazer um prédio igual para todo mundo e dizer que está resolvendo o problema. Mas isso ignora as redes de solidariedade, os modos de vida, as relações de vizinhança e o cuidado coletivo com os filhos”, explica Débora.
Em junho, diante da repercussão das ações de remoção das famílias pelo governo de SP, o governo federal interveio para complementar o atendimento e garantir que os apartamentos fossem doados às famílias — no modelo “chave por chave” —, sem exigir financiamento. “Se deu certo lá, por que não pode ser uma referência para outras regiões?”, questiona a pesquisadora.
Ela lembra que existem instrumentos legais que poderiam ser utilizados para regularizar a posse dessas famílias, como a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia, prevista na Medida Provisória 2.220/2001. Pela legislação, quem ocupa um terreno público por mais de cinco anos pode ter reconhecido o direito de permanecer no local.
Outro mecanismo possível é a CDRU (Concessão de Direito Real de Uso), que pode ser aplicada a comerciantes que vivem e trabalham na área. “O Estado não é obrigado a conceder esses instrumentos, mas, como a Constituição garante o direito à moradia, esse deveria ser o caminho para garantir justiça social”, defende.
O PROJETO
O Projeto Guaianases – APA Iguatemi foi elaborado em 2013, teve uma atualização em 2015, mas só começou a ser implementado de forma concreta em junho de 2025. A proposta prevê a revitalização da área considerada como APA (Área de Preservação Ambiental).
O terreno conhecido como ‘Mata do Iguatami’, sob responsabilidade da CDHU, trata-se de uma APA (Área de Proteção Ambiental), estabelecida pela Lei Estadual 8.284, de abril de 1993, assinada pelo ex-governador Luiz Antonio Fleury Filho, o que determina a construção de dois conjuntos habitacionais.
Outra parte, a área de mata, é administrada pela Fundação Florestal, também do governo paulista. “Mas com a chegada das implantações de novos parques municipais como o Cabeceiras do Aricanduva, do Parque da Mata das Sete Cruzes e a ampliação do Parque do Rodeio, o governo decidiu colocar em prática”, explica Hamilton.
O terreno está entre as seguintes vias: a Estrada Iguatemi e a avenida Souza Ramos. O desmonte das comunidades, como está no projeto, serão divididos em duas etapas.
Além dos conjuntos habitacionais, terá áreas de lazer e um acesso ao Parque Municipal Vila do Rodeio. A entrega total da área está prevista para 2027. No mesmo local, a Prefeitura de São Paulo faz obras de canalização do córrego Ribeirão Itaquera, previsto para ser entregue em dezembro deste ano.
Para as 500 famílias que serão retiradas do local, a CDHU oferta o financiamento de uma das 717 moradias disponíveis de 33m² a 52,49m² em três locais da zona leste: duas na Cidade Tiradentes e uma no bairro José Bonifácio.
A Agência Mural solicitou esclarecimentos à Prefeitura de São Paulo, à Fundação Florestal e à CDHU desde maio, a respeito das remoções previstas nas quatro comunidades e do projeto urbanístico na região da APA Iguatemi.
Em resposta, a SMUL (Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento) informou que o empreendimento habitacional mencionado possui Alvará de Aprovação e Alvará de Execução emitidos pela pasta, conforme a legislação vigente. A Secretaria afirmou não estar envolvida no projeto.
A assessoria de comunicação da Prefeitura acrescentou que “a Secretaria do Verde informou que a APA Iguatemi é gerida pela Fundação Florestal, que é um órgão estadual.”
Por sua vez, a Fundação Florestal declarou que “não participou e não tem ciência de qualquer decisão ou execução de ações relacionadas à referida intervenção”. Além disso, negou que o projeto urbanístico esteja localizado dentro do perímetro da APA (Área de Proteção Ambiental).
Em nota, a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) afirmou que “está elaborando um projeto de requalificação urbana em Guaianases para implantação de áreas verdes, de lazer e equipamentos culturais, aliado à construção de novas moradias.
A equipe social da CDHU já fez o cadastramento das famílias da área e montou um escritório no bairro dedicado para o atendimento à comunidade, com apoio da Subprefeitura”, informou. A companhia esclareceu ainda que “todas as famílias que precisarem de reassentamento terão atendimento digno pelos programas da Companhia”.
Jornalista, tenho um pezinho na música e sou curioso por tecnologia. Além de fazer carinho nos cães e gatos de rua, curto boas histórias, filmes, séries e memes, sou bom de garfo e gosto de andar por aí. Correspondente de Cidade Tiradentes
Jornalista, pós graduada em Marketing pela USP e mãe de um menino. Apaixonada por comunicação com propósito, busca promover justiça social através da informação. Ama contar histórias que inspiram e gerar mudanças positivas.
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