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Amizade, cultura e resistência marcam encontros semanais na zona norte de SP
Por: Nathália Ract da Silva
Notícia
Publicado em 25.09.2025 | 16:57 | Alterado em 25.09.2025 | 16:57
Nos fins de semana de vento forte, o céu da Jova Rural, bairro da zona norte de São Paulo, se transforma em um espetáculo de cores. É lá que o grupo Pipeiros da Torre, criado por moradores da região, se reúne na torre do bairro, próximo à Rua Roberto Lanari, para confeccionar, empinar e disputar combates de pipas.
Mais que diversão, o coletivo criado em 2022, formado pelos moradores Mike, Nado, Will, Benção, Alan, Du, Dadazinho, Mel e Cebola, assim apelidados entre eles, defende a prática como forma de cultura, memória e responsabilidade.

Integrantes do grupo Pipeiros da Torre. Da direita para a esquerda: Mike,Will, Kaique, Ismael e Nado @Nathalia Ract da Silva/Agência Mural
Às nove da manhã, já é comum ver crianças circulando pelo bairro em busca da “xepa das pipas” — aquelas que caem depois dos combates aéreos. “Elas ficam à espreita aguardando as pipas serem cortadas e competem entre si para recolher o maior número”, diz Leonardo Ferraz, 46. conhecido como Nado.
Pensando nelas, o grupo organizará no Dia das Crianças a segunda edição de distribuição gratuita de pipas, linhas e rabiolas.
“Pipa é diversão e alegria, mas também é responsabilidade. Nós gostamos de fotografar e filmar as nossas pipas voando no céu. É muita emoção”, comenta Michael Santos, 40, mais conhecido como Mike ou Dadá, responsável por criar o grupo.
Além de encontros semanais, os Pipeiros da Torre defendem a criação de oficinas que ensinem crianças e adolescentes a confeccionar pipas de forma consciente.
Entre os integrantes está Willian Dias, 32, o Will, que começou a empinar pipas aos cinco anos no Jardim Hebrom. A partir de 2022, passou a confeccionar modelos personalizados inspirados na capa do livro “Quilombismo: Documentos de uma militância Pan-africanista” e na obra Okê Oxóssi (1970), de Abdias do Nascimento.

A pipa do Willian faz referência ao livro “O Quilombismo”, de Abdias Nascimento @Nathalia Ract da Silva/Agência Mural
O desenho ressignifica a bandeira nacional ao introduzir um arco e flecha do orixá Oxóssi em memória da luta dos negros e dos povos originários no Brasil. Will destaca o interesse pelo campo da imagem que trata da corporeidade negra e o resgate das religiões de matriz africana.
Ele conta que o processo para fazer a pipa começa pelo desenho das figuras geométricas, depois corta cada folha de seda. “Sobreposto à bandeira do Brasil está o arco e flecha, símbolo de Oxóssi, orixá da caça e da cura pelas ervas”.

Bandeira do Brasil com cores vibrantes como o verde, amarelo, vermelho e o preto @Nathalia Ract da Silva/Agência Mural
Para além da estética, essa pipa não leva somente a imagem do livro aos céus, mas também reafirma a importância de manter e ampliar a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio da população negra e periférica.
Esses temas coincidem com o atual trabalho do William no ISA (Instituto Socioambiental), organização não governamental, que atua na defesa de bens e direitos ambientais, com foco em povos indígenas e comunidades tradicionais.

Nado, Leonardo, integrante do grupo Pipeiros da Torre Jova Rural @Nathalia Ract da Silva/Agência Mural
Outro integrante é Ismael dos Santos, 46, o Mel. Morador do Jardim Hebrom há mais de 20 anos, entrou para o grupo há dois anos. Mel solta pipas desde a infância e lembra da primeira confecção aos 10 anos, em Americanópolis, bairro da zona sul, com materiais improvisados.
“A vareta não era nem de bambu. Eu descascava os madeirites, retirava os pedaços e afinava para virar uma vareta. A folha de seda eu peguei de uma caixa de sapato. Fiz a armação e coloquei a minha primeira pipa para o alto. Fiquei feliz”, relembra.
Mas a felicidade durou pouco. “Logo que ela subiu, cortaram a pipa. Aí eu fiquei triste demais, porque até arrumar outra folha daquela ia demorar.”

“Gosto muito de pipa, é um sentimento que vem do meu peito, do meu coração”, diz Ismael @Nathalia Ract da Silva/Agência Mural
Já o integrante Leonardo Ferraz, 46, conhecido como Nado, mora no bairro há mais de três décadas e foi responsável por ensinar Will a confeccionar sua primeira pipa. Para ele, a prática é memória de infância e também de pertencimento. “Época de pipa, o céu tá cheio. Quinze anos atrás eu tava ali no meio. Lembrei de quando era pequeno, eu e os caras”, cita, em referência à letra da música Fórmula Mágica da Paz, dos Racionais MC’s.
Essa união e parceria é destacada por Mike, fundador do Pipeiros da Torre. “O objetivo é juntar os amigos para empinar pipa, se divertir e também conversar sobre outras coisas além do pipa. Para entrar no grupo, precisa ser uma pessoa do bairro, que gosta de soltar pipa, que seja responsável e que participe das nossas resenhas”, conclui.
Historiadora e Fotojornalista. Realizadora do documentário curta-metragem "Chile de olhos bem abertos". É contadora de histórias na biblioteca da Fábrica de Cultura do Jaçanã. Correspondente do Jaçanã desde 2023.
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